Se você acompanha o noticiário de quadrinhos – ou de literatura –, as duas últimas semanas foram de Alison Bechdel. Ela lançou seu novo livro, The Secret to Superhuman Strength (que eu já tinha comentado aqui) e o encontro da massa de ar quente e úmida da assessoria de imprensa com a corrente polar de jornalistas subitamente interessados por uma estrela da Broadway gerou a tempestade perfeita de cobertura.
Não é que The Secret tenha ganhado notinhas no Bleeding Cool. Bechdel é outro nível. A graphic novel ganhou resenha comprida na New Yorker, outra no New York Times, outra na Atlantic, um trio de publicações onde qualquer autor de respeito correria atrás de uma mençãozinha. Teve meia hora de conversa entre Bechdel e a entrevistadora mais admirada do país, Terry Gross, na NPR. Bechdel também falou com a Vogue, com o Los Angeles Times, com o Washington Post, com o Boston Herald, com o Boston Globe e com o Vulture.
É apropriado que Bechdel tenha feito uma maratona na mídia, visto que o novo livro trata de exercício. Tal como Fun Home e Você É Minha Mãe?, The Secret é autobiográfico, mas o foco sai da família para a própria Alison e seus 60 anos obcecados em fazer todo tipo de exercício físico – seja para pensar no corpo, seja para paz de espírito, seja para se isolar do mundo. Ela fez aeróbica com a TV, esquiou na neve, escalou montanha e teve fases de yoga, trilhas, bicicleta, pilates, musculação e karatê.
É gratificante, até emocionante, ver qualquer autor de quadrinhos ganhar essa visibilidade na grande imprensa. Bechdel tem quarenta anos de quadrinhos, mas seu nome só circulou de verdade no próprio meio das HQs com Fun Home, há quinze anos. Circulou ao mesmo tempo entre o grande público: a Time chamou de livro do ano, entre todo e qualquer livro lançados em 2006.
Veio a adaptação para a Broadway – prêmio Tony de Melhor Musical em 2015 –, veio a Bolsa MacArthur para Bechdel – dada a gênios das artes –, veio a difusão do Teste Bechdel. Fun Home virou referência da literatura LGBTQ+ e entra fácil em lista de melhores graphic novels da história.
Ou seja: não é à toa que a imprensa corre atrás de Bechdel.
Como a fama é do lado de lá dos quadrinhos, os papos com Bechdel e as resenhas são menos sobre HQ e mais sobre os assuntos da HQ. O que não é um grande problema: sempre é bom colocar a história na frente dos em quadrinhos.
Mas falta alguma coisa nas conversas e nos comentários. Por exemplo: Fun Home e Você É Minha Mãe? têm estilos de desenho muito diferentes, que são uma decisão artística de Bechdel conforme o tema de cada HQ. Qual é o estilo de The Secret to Superhuman Strength? Como que ela organiza a página? Como são as soluções visuais? Qual é a página que faz você voltar? Há alguns comentários quanto às cores – é o primeiro livro de Bechdel com mais de duas tintas – mas são rasos.
É como se, para falar de um quadrinho, a grande imprensa ainda tem que ignorar que aquilo é um quadrinho. Qualquer jornalista não-especializado se arrisca a (pesquisar e) falar sobre a fotografia de um filme, sobre a presença de palco no teatro, sobre a escolha das palavras na literatura. Quadrinhos ainda são um terreno pantanoso pro leigo se arriscar a dar opinião sobre algo mais que a história. Não devia.
(E eu sei que é comparar banda de arena a bandinha de garagem, mas Bechdel escolheu o título inspirada nos mesmos anúncios de Charles Atlas que inspiraram Flex Mentallo, de Morrison e Quitely, um marco para quem lê gibi do lado de cá.)
Mas é só incômodo pequeno. O que importa é Bechdel receber toda atenção que merece. Aliás, na Vulture, ela fala que escreveu o piloto de uma série animada de Dykes to Watch Out For, sua tira. Não fica claro se vai acontecer ou não. Ela não toca no assunto da adaptação de Fun Home pra cinema (com Jake Gyllenhaal).
E a editora Todavia aproveitou o embalo da divulgação lá fora para confirmar o lançamento de The Secret to Superhuman Strength no Brasil, com tradução da escritora Carol Bensimon. Ficou para o ano que vem. Mas deve rolar novidades com Bechdel em breve.
A SAFRA DA ESTAÇÃO
Difícil alguém superar Bechdel como graphic novel do ano nos EUA. Mas tem gente correndo junto e chamando atenção da mídia não-especializada e especializada, mesmo que estela longe do nível de Secret to Superhuman Strength. São os lançamentos de primavera nos EUA, sempre uma época disputada.
Monsters, de Barry Windsor-Smith (Fantagraphics), que já comentei na coluna, rendeu resenha e entrevista no Guardian, assim como um papo rápido na NPR e uma resenha também apressada na Forbes. De certa forma, é um material mais “nichado”, para quem trata o autor por BWS. Não deixa de ser um espetáculo.
O britânico Darryl Cunningham já tinha lançado Billionaires: the lives of the rich and powerful na Inglaterra em 2019, mas agora que o livro chegou na América do Norte, via Drawn & Quarterly, a imprensa se avivou. É uma HQ-reportagem sobre as mega-riquezas de Jeff Bezos, Rupert Murdoch e dos irmãos Koch. Tem preview de um trecho sobre a exploração de funcionários da Amazon no Buzzfeed News e um papo muito legal com Cunningham no podcast Virtual Memories.
Correndo por fora, o estreante Will McPhail apareceu com uma graphic novel chamada apenas In, sobre um introvertido. McPhail é conhecido como cartunista da New Yorker e esse primeiro livro chegou a ser disputado por três editoras. Por enquanto o burburinho é baixo – está na Publishers Weekly, no Comics Beat– mas tenho impressão que o nome de McPhail vai brilhar.
Pelo menos um dos acima já tem editora no Brasil.
LAERTE ESGOTADA
Manual do Minotauro, a coleção de tiras da Laerte prometida há tempos pela Quadrinhos na Cia., foi anunciada esta semana para lançamento em julho. Em menos de 48 horas, a edição com autógrafo – limitada a pré-venda em quatro lojas – esgotou.
A editora não revelou o número de exemplares com autógrafo, mas Laerte está contente com o trabalho extra: “Gosto de autografar. Não que não canse quando é muita coisa. Mas lembro da minha satisfação quando consegui autógrafo das pessoas que curtia e isso traz uma luz importante.”
“Tivemos ótimas experiências com os livros do Angeli, da Bruna Maia, com o 1984 do Fido Nesti”, disse o editor da Quadrinhos na Cia., Emilio Fraia, “e agora com a Laerte. É uma forma especial de relação entre o autor e leitor. Sempre que possível, tentamos organizar pré-vendas do tipo, porque o retorno tem sido surpreendente.”
TINTIM PODE TRANSAR
Há dois meses, falei do processo que os detentores dos direitos de Tintim estavam movendo contra o pintor Xavier Marabout, que expôs quadros onde o personagem de Hergé (1907-1984) anda com mulheres sensuais por paisagens hopperianas.
Depois de quatro anos, o processo chegou numa decisão. Na segunda-feira, o tribunal de Rennes concluiu que o trabalho de Marabout se encaixa como paródia, pois tem “intenção humorística” e “viés crítico”. É uma piada, e os donos do Tintim não precisavam se ofender.
A Moulinsart, empresa que administra o espólio de Hergé, ficou condenada a pagar 10 mil euros (R$ 64 mil) por prejuízo à carreira de Marabout – eles ligavam para as galerias mandando tirarem os quadros de exposição – e mais 20 mil pelas custas judiciais. Os donos de Tintim ainda podem recorrer.
CROCODILOS
Para uma mulher sozinha na rua, às vezes os homens lembram criaturas verdes, rastejantes, escamosas e de dentes afiados. É o que o belga Mathieu Thomas desenhou nos quadrinhos do Projeto Crocodilos, lançado em 2013 no Tumblr.
O Tumblr virou livro, que está chegando no Brasil pela Faria e Silva Editora. São coleções de histórias reais sobre assédio, retratadas com personagens répteis, em pequenas HQs.
Os Crocodilos está em campanha no Catarse, com edição prevista para setembro. Vale a pena ver na página da campanha os depoimentos de Bruna Rangel, da ONG Não Me Calo, contra assédio e sexismo, e da tradutora (e quadrinista) Aline Zouvi.
“A HQ por si só já seria uma boa contribuição para a discussão sobre um assunto tão emergente que é a naturalização do assédio sexual”, Zouvi disse no Instagram. “Mas resolvemos fazer um movimento em torno da temática desta publicação, para que possa ser levado ao maior número de pessoas, crocodilos ou não, com o objetivo de alertar, alarmar e clamar pelo fim do assédio."
CHIP KIDD DESTRINCHA O QUARTETO
Ainda não entendi bem o que é, mas estou curioso. Está anunciado para o fim do ano um livrão da Abrams chamado Fantastic Four n. 1: Panel by Panel. Parte das comemorações de 60 anos do Quarteto Fantástico, parece que vai ser uma dissecação da primeira revista do Quarteto.
“Com fotos estonteantes do premiado fotógrafo Geoff Spear, Fantastic Four n. 1 é analisada como você nunca viu – em tamanho avantajado e bem de perto – numa investigação quadro a quadro de toda a revista, captando cada detalhe e nuance da trama de Lee e da arte revolucionária de Kirby.”
O livro tem design e concepção de Chip Kidd. Ele e Spear têm dois livros sobre Peanuts que são xodós da minha coleção. A descrição deste do Quarteto dá a entender que eles pegaram uma edição de Fantastic Four n. 1, lá de 1961, e começaram a fotografar e comentar cada uma das 36 páginas. O livro tem 260 páginas.
Sei que Bruno Porto tentou entrar no assunto desse livro quando entrevistou Kidd para a CCXP do ano passado, mas não conseguiu tirar muita coisa do designer de oclinhos. Estou curioso.
VIRANDO PÁGINAS
O Homem-Borracha apareceu pela primeira vez em Police Comics n. 1, lançada em 14 de maio de 1941 – há 80 anos. Criação de Jack Cole (1914-1958), o personagem é um criminoso que leva um tiro, fica às portas da morte, se mete com uns produtos químicos esquisitos e é resgatado por uma ordem de monges. Suas primeiras histórias são clássicas, e só se equiparam às de Kyle Baker neste século.
Marv Wolfman completou 75 anos ontem. Veterano de DC e Marvel – chegou a ser editor-chefe da última –, ele esteve envolvido na criação de vários personagens (Ciborgue, Ravena, Exterminador, Nova, Gata Negra, Mercenário), teve enorme sucesso nas colaborações com George Pérez em Novos Titãs e Crise nas Infinitas Terras e segue escrevendo. Além de republicar sua fase clássica nos Titãs, a Panini anunciou para junho sua HQ mais recente: Superman: Homem e Superman, com Claudio Castellini.
No dia 16, comemora-se 20 anos que a Marvel Comics anunciou que estava abandonando o Código de Ética dos Quadrinhos – o selinho e a censura prévia que carregou por quase 50 anos. No mesmo dia, a editora lançou New X-Men n. 114, início da fase revolucionária dos mutantes por Grant Morrison e Frank Quitely.
O quadrinista goiano Paulo Paiva faleceu no dia 9, aos 63 anos. Paiva trabalhou desde os 13 como cartunista, escreveu roteiros para Mauricio de Sousa e para Zé Carioca na Abril. O Universo HQ tem o obituário completo do autor, escrito por Franco de Rosa
Numa coluna de dezembro, escrevi sobre Patrick Dean, quadrinista dos EUA que sofria de esclerose lateral amiotrófica e estava perdendo progressivamente os movimentos do corpo. Para não deixar de fazer quadrinhos, Dean vinha aprendendo a desenhar com uma tecnologia que acompanhava o movimento do olho. Tinha chegado no nível acima. Era a vontade de desenhar acima de tudo.
Dean faleceu na quarta-feira. Não há mais informações além do que foi postado por um amigo no Instagram e outras redes, mas supõe-se que tenham sido complicações da doença.
Desenhe enquanto puder.
UMA CAPA
Ou duas. Ou três. De Black Dogs e King, ambos de Ho Che Anderson, que a Veneta anunciou em pré-venda para fim de julho. King é a biografia de Martin Luther King, enquanto Black Dogs é um “prelúdio filosófico” da bio, explorando racismo na Los Angeles dos anos 1990. A tradução de ambas é de Dandara Palankof.
A Veneta vai lançar os dois volumes separadamente e nesta caixa em edição limitada. O design é de Gustavo Piqueira.
UMA PÁGINA
Aaaaa 👼 pic.twitter.com/tV8MsLVUgh
— paulo moreira (@paulomoreria) May 12, 2021
Do Paulo Moreira. A melhor Graphic MSP que já se viu.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato e autor do livro Balões de Pensamento.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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