Já falei da biografia True Believer: the rise and fall of Stan Lee duas vezes na coluna. Vou pedir licença para falar mais uma, porque o livro finalmente saiu, na semana passada, e eu li.
Para compensar minha insistência, venho com uma novidade exclusiva: o livro vai sair no Brasil. A editora é a Globo Livros – que também tem uma biografia de Will Eisner no catálogo. Ainda não há previsão de lançamento.
Quando chegar aqui, leia. Mesmo que você já saiba todas as histórias de Stan Lee, morto em 2018. Não só porque eu garanto que tem coisas que você não sabe, mas porque é um livro muito bem escrito.
O motivo para minha expectativa com o livro não era a história de Lee, mas o autor, Abraham Riesman. Riesman foi jornalista de quadrinhos do Vulture, site de cultura pop que exige redatores não só com muito conhecimento da sua área, mas com ótimo texto. Riesman respira os gibis mais obscuros da Marvel setentista e a última graphic novel da autora indie, e sabe escolher uma palavrinha bonita para encaixar em outra.
No Vulture, ele entrevistou muita gente da área, fez uma resenha comentadíssima de The Boys e o texto em que ele conta a tentativa de entrevistar o Steve Ditko é uma obra-prima.
Em 2016, quando saiu aquela “autobiografia em quadrinhos” picareta do Lee – nem auto nem bio – Riesman fez um perfil de Lee na Vulture que, mesmo pesando todos os lados do criador, foi considerado um ataque. Inclusive pelo próprio Lee, ainda vivo na época. Foi por causa deste artigo que Riesman foi contratado para escrever a biografia completa.
No podcast Off Panel, a primeira pergunta que Riesman encara é: “O que você tem contra o Stan?” Esperava-se um livro de má vontade com o biografado, de revelação de podres, de fazer Lee se revirar no túmulo. Tem tudo isso, mas não só.
A maior parte da humanidade conhece Lee dos cameos em filme da Marvel e só sabe de um velhinho boa praça cheio de energia. Alguém cochichou pra essas pessoas que o Lee “criou a Marvel”. Essas pessoas iam se escandalizar com a biografia, mas provavelmente não vão atrás do livro.
Quem tem mais estrada como marvete já ouviu falar dos bastidores: Lee ficou com mais fama e grana do que é justo pelas colaborações – sim, colaborações – que levaram à criação de Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, X-Men, Homem de Ferro, Thor, Demolidor etc. Jack Kirby (1917-1994) e Steve Ditko (1927-2018) passaram décadas reclamando de terem sido ofuscados na fama e na grana – e Lee nem sempre admitiu que devia dividir os créditos.
Há uma campanha contra o estrelato de Lee pelo menos desde os anos 1980, capitaneada pelo Comics Journal e sobretudo em prol de Kirby. É fácil falar mal de Lee: era um palhacinho, era um marketeiro, era o capataz que explorava os frilas a baixava a cabeça para os chefes. E talvez Quarteto, Aranha, X, Ferro, Thor e etc. tenham sido mais criação de Kirby, Ditko e companhia do que dele. Talvez.
O banho de água fria: Riesman diz que essa discussão da autoria dos personagens Marvel nunca vai se resolver. Não há documentos, só disse-que-disse e “investigações” críticas que estão mais para sessão espírita. Tipo: Quarteto Fantástico lembra muito coisas que o Kirby fez antes na carreira, então deve ser mais Kirby do que Lee… Deve ser não basta para uma biografia séria.
A biografia recente de Kirby por Tom Scioli defende abertamente o lado de Kirby e trata Lee como vilão. Na biografia de Lee, Riesman tenta defender o lado de Lee e mostra o disse-que-disse… Mas o biógrafo fica, no geral, em cima do muro. De novo, porque falta documentação.
Se mal se guardava os originais dos desenhistas, imagine roteiros. Isso quando havia roteiros, pois eles podiam vir de uma reunião ou de uma conversa por telefone. Sem documentos, as palavras de Ditko e Kirby valem tanto quanto a de Lee.
Uma coisa que a biografia provoca, porém, é uma reflexão sobre os desenhistas que não gostavam de se manifestar – não em palavras, e isso é típico dos artistas visuais. John Romita (1930-), John Buscema (1927-2002) Don Heck (1929-1995) e outros colaboraram com Lee, contribuíram inegavelmente para os anos de ouro da Marvel e, até onde sei, não brigaram por mais reconhecimento. Por que viram, com Ditko e Kirby, que não ia dar certo? Por que não estavam a fim? Ou por que não tinham do que reclamar?
With my dear brother Larry and my oldest friend Ken.
— Stan Lee (@TheRealStanLee) June 1, 2018
Excelsior! pic.twitter.com/Ts0M4hx4uW
Um dos trunfos da biografia de Riesman são fontes privilegiadas. Ou quase. Ele encontrou Larry Lieber, irmão de Lee, num apartamentinho em Nova York e conseguiu tirar informações e opiniões valiosas do caçula. Mas só até ali, porque Lieber ainda quer publicar uma autobiografia (ele tem 89 anos). Vale lembrar a biografia de Kirby que já citei, que compara Larry e Stan respectivamente aos irmãos Thor e Loki.
Riesman também se meteu com figuras muito suspeitas. Uma é Keya Morgan, empresário que se associou a Lee e acabou preso por abuso de idoso (mas já está solto). Morgan recebe agradecimentos no final por conseguir várias fontes para o livro.
A outra figura altamente suspeita é Peter Paul, sócio de Lee na Stan Lee Media, empresa que chegou a ter mais dinheiro que a própria Marvel durante a bolha pontocom, mas que acabou se mostrando uma grande maracutaia. Paul foi condenado por crimes financeiros, virou procurado da Interpol e passou anos preso no Brasil e nos EUA.
Riesman queria outra fonte importante: Joan Celia Lee, a J.C., filha única de Stan Lee. O máximo que conseguiu foram três minutos de uma conversa por telefone sem pé nem cabeça que o autor relata no início do livro. De outras (e várias) fontes, Riesman apurou que J.C. foi uma dor de cabeça para os pais durante toda a vida, que nunca teve emprego, que Lee estava sempre mal de dinheiro porque ela (e a esposa Joan) eram gastadoras compulsivas e até histórias de agressão física da filha ao pai quando ele tinha mais de 90. Ela tem 71 e também quer publicar uma autobiografia, chamada Meu Pai Me Comprou uma Casa.
Troops, yr #Generalissimo's daughter JC Lee is now on @twitter, be sure to follow her @therealjclee_ pic.twitter.com/osdWLC7q9V
— Stan Lee (@TheRealStanLee) November 6, 2014
Os últimos dois anos da vida de Lee ganham o maior capítulo do livro. É uma história triste, também de muito disse-que-disse, sobre um senhor na décima década de vida, sorrindo nos cameos de filmes bilionários e sendo explorado a torto e a direito por aproveitadores. Inclusive a própria filha.
É nesse capítulo que Riesman, equilibrando investigação séria, juntando várias fontes para confirmar cada dado (não só porque é bom jornalista, mas porque está sujeito a processos de difamação) e contando todo o processo de apuração, mostra a prosa que tem.
As resenha e entrevistas sobre The Rise and Fall of Stan Lee estão pipocando a ritmo acelerado na mídia americana. O site do Comics Journal até ironizou, nos seus links de mídia especializada da semana: “o circo chegou na cidade, armou o picadeiro e levantou um letreiro gigante que diz ‘A BIOGRAFIA DO STAN LEE’, cercada de banquinhas bambas e brinquedos em que era melhor você não se arriscar.”
Uma resenha que vale a pena é a de Roy Thomas, um dos grandes discípulos de Lee, no Hollywood Reporter. Thomas elogia Riesman pela prosa e diz que 95% do livro é ótimo. Quanto aos outros 5%, Thomas diz que Riesman deu confiança sem base aos detratores de Lee. É uma ótima leitura depois do livro.
Além de ser discípulo de Lee – ou capacho de Stan, como Jack Kirby brincava –, Thomas escreveu sua própria biografia do mestre, um livrão ilustrado da Taschen que custa mais de mil reais. Portanto, sabe que tudo que ele disser vai ser visto com desconfiança. Seus argumentos, porém, são afiados como a espada do Conan. E ele traz inclusive essa anedota que não prejudica, mas ajuda a bio de Riesman:
“Que Stan Lee foi co-criador, e não único criador, dos principais heróis da Marvel, de Quarteto Fantástico a Homem-Aranha, passando por Demolidor e Surfista Prateado, é algo que mal se precisa discutir hoje em dia. Eu mesmo, nos anos 1980, quando não trabalhava para ele, tive uma discussão amistosa sobre o assunto durante um almoço. Logo me dei conta que, por mais que ele respeitasse o talento e a contribuição de artistas como Jack Kirby e Steve Ditko aos personagens dos anos 1960, ele nunca se convencia a pensar neles como ‘co-criadores’. Nós dois concordamos em discordar.”
Riesman pode ter pecado em algumas intepretações, ou dado mais voz a quem só tinha voz, não provas. No fim, a biografia ainda parece um retrato equilibrado diante das fontes que se tem. A conclusão podia ser o título que o próprio Riesman deu ao obituário de Lee: “A lenda da Marvel nos deu mais do que tomou”.
CRUMB
Falando em biografias, outra figura controversa vai ganhar a sua pelas mãos de um bom escritor. E também vai sair no Brasil.
A Todavia já está divulgando Only Human: a biography of Robert Crumb, de Dan Nadel. A figura-mor do quadrinho underground já se autobiografou e foi biografada algumas vezes – inclusive no famoso filme de 1994, Crumb –, mas o livro novo promete.
Nadel é autor de dois belos livros sobre o quadrinho alternativo, Art Out of Time e Art In Time, foi editor do Comics Journal e curador de uma cacetada de exposições sobre HQ e os anos 60. Dá para ouvir biógrafo e biografado conversando nesse podcast.
Only Human ainda está sendo escrito e, tanto aqui quanto nos EUA, sai só em 2023 – quando Crumb completar 80 anos.
Para quem estiver com saudade do velho Crumb, esta semana saiu em inglês Crumb’s World, o catálogo de uma exposição de 2019 em que o autor mostrou até os caderninhos de rabisco. No Brasil, seu último trabalho saiu na revista Mau, da Veneta.
TAMAKIS
Falando em 2023, a editora Drawn & Quarterly fez questão de anunciar que vai lançar um novo projeto das primas Mariko Tamaki e Jillian Tamaki daqui a dois anos.
Não é comum editoras anunciarem projetos com tanta antecedência; o álbum nem tem nome. Mas as duas autoras merecem o destaque. A última colaboração delas, Aquele Verão, é uma das melhores HQs da história e, independentes, as duas se destacam em álbuns como Boundless (Jillian, ainda inédito no Brasil) e Laura Dean Vive Terminando Comigo (Mariko com Rosemary Valero-O’Connell, aqui pela Intrínseca).
A trama se passa em 2009 e trata de três amigas no primeiro ano de faculdade que vão passear em Nova York.
ADAM E ALAN
Adam Curtis é o meu documentarista preferido e acaba de lançarCan’t Get You Out of My Head (estou assistindo). No meio de um perfil da New Yorker sobre o britânico:
Curtis é amigo de Alan Moore, o ex-escritor de quadrinhos que mora em Northampton, nas Midlands. (Moore, que se diz anarquista, escreveu V de Vingança, Do Inferno e Watchmen, mas se desligou da indústria.) Durante o primeiro lockdown do coronavírus na Grã-Bretanha, Curtis enviou a Moore e esposa, Melinda Gebbie, um pen drive com todos seus filmes. Assistir todo o catálogo de Curtis deixou Moore em um estado que ele comparou ao sonho lúcido. “Cada indivíduo tende a compilar um imenso banco de imagens, um imenso arquivo de experiências e coisas que já vimos e vivemos, e os arquivos a que Adam tem acesso são praticamente nossa memória cultural coletiva”, ele disse. “Ao justapor estas imagens, ele gera convergências de sentido que são espantosas, tal como faz um sonho – talvez você não entenda na primeira experiência, mas aquilo vai te assombrar.” Moore me contou que se sentiu “neurologicamente espumante” depois de cada filme. Ao fim da maratona, ele enviou a Curtis um cartão postal, comparando seu trabalho “àquele sonho em que percebemos que estamos sonhando e assim temos agência diante da torrente de absurdos.”
PRÊMIO MCDUFFIE
Na coluna da semana retrasada, falei do Dwayne McDuffie Award for Diversity in Comics, o prêmio concedido a quadrinhos com temas de visibilidade de raça, gênero e minorias que leva o nome do roteirista negro que teve morte precoce.
A última cerimônia aconteceu no sábado, dia 20, e premiou Eles Nos Chamavam de Inimigo, a biografia de George Takei (em colaboração com Justin Eisinger, Steven Scott e Harmony Becker). O álbum saiu aqui pela Devir em 2019.
Entre os cinco concorrentes estava a edição norte-americana de Angola Janga, de Marcelo D’Salete.
VIRANDO PÁGINAS
Michel Rabagliati, autor de A Canção de Roland, completa 60 anos no domingo, dia 28. Rabagliati, como comentei na coluna do início do mês, é o canadense que registra sua vida em quadrinhos, mas usa o codinome Paul. Já lançou dez destes e o último, Paul à la Maison, é uma das grandes HQs de 2020.
A National Cartoonists Society dos EUA completa 75 anos na segunda-feira, dia 1º. A organização foi fundada para promover o cartunismo e acompanhou o auge da profissão no século 20. Entre seus fundadores estavam Milton Caniff (Terry e os Piratas), Ernie Bushmiller (Nancy) e um dos criadores do Superman, Joe Shuster. A NCS ainda promove todo ano a entrega do respeitado Reuben Award.
No dia 5 de março de 1941, chegava às bancas dos EUA Adventure Comics n. 61, que coincidentemente lançou dois personagens da DC que ainda estão na ativa: Starman, de Jack Burnley, e Sandman, de Gardner Fox e Bert Christman. Os personagens que conhecemos por esses nomes hoje são outros, mas a origem está lá, há oitenta anos.
Com março de 1981 na capa, Dazzler n. 1 chegou às comic shops há quarenta anos como primeira série da Marvel pensada para o mercado direto – o nicho dos colecionadores que acabou virando todo o mercado do quadrinho tradicional nos EUA.
UMA PÁGINA
De Contos em Noite de Primavera Árida, nova HQ do paulista Alex Sander. São cinco histórias com bastante surrealismo para botar em quadrinhos o que o autor pensa de violência, opressão, racismo e solidão, entre outras coisas.
UMA CAPA
Ou um pôster. De Dave McKean para o Lakes International Comic Art Festival, que acontece na cidadezinha de Kendal, norte da Inglaterra, em outubro.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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