O que você produziu de melhor em 2020?
E quais são seus projetos para 2021?
Mandei essas duas perguntas para uma lista de quadrinistas do Brasil. Vou publicar as respostas na coluna durante janeiro.
Já falei com Pedro Cobiaco, Verônica Berta, Camilo Solano e Jéssica Groke na primeira coluna da série, e com Lelis, Ing Lee, Deborah Salles e Wagner Willian na segunda.
Quanto ao melhor de 2020, vale tudo: uma HQ inteira, uma página, uma tira, uma capa, uma charge, uma ilustração. Só pedi que me enviassem uma imagem.
Quanto a 2021, cada um pode interpretar como quiser, falando sobre a vida ou sobre trabalho.
GIDALTI JR. É BREGA
Gidalti Jr. deu um susto na cena de quadrinhos brasileiros em 2016, quando apareceu com Castanha do Pará – a graphic novel independente que desbancou todas as outras no primeiro Prêmio Jabuti com a categoria Histórias em Quadrinhos.
O que Gidalti Jr. anda fazendo desde então? Ele se afundou no brega.
Brega Story é o nome da sua nova HQ. É sua volta ao Pará e a Belém, onde a música brega é ao mesmo tempo mainstream e periferia, precariedade e brilho, sucesso e decadência.
“Posso dizer que acompanhei profundamente esse cenário do brega, do tecnobrega e das festas de aparelhagens em Belém”, diz Gidalti, em conversa por e-mail. Nascido em Minas Gerais, ele passou boa parte da vida em Belém. Mora atualmente em São Paulo, “mas volto a Belém com frequência, quatro vezes por ano”.
A trama conta a trajetória de Wanderson Jr., o músico Breguinha, mas percorre todos os bastidores do brega belenense, “em um grandioso tratado sobre a pequeneza humana, onde a dor de corno é ofuscada pelo brilho das lantejoulas e sintetizada no pulso dos beats melodramáticos”, segundo a descrição.
E vai ser um espetáculo visual: 300 páginas misturando lápis, aquarela, nanquim e intervenções de design gráfico, “sacudido pela malemolência do brega”.
A primeira imagem de Brega Story sai aqui com exclusividade. A HQ foi realizada com apoio do Proac (o programa de financiamento de quadrinhos da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo) e vai sair por uma nova editora nacional em julho. Aguarde muito mais sobre o novo projeto de Gidalti.
BRENDDA NO APARTAMENTO
“Durante meus meses isolada na casa da minha mãe, no lockdown de Fortaleza, eu produzi tirinhas”, Brendda Maria me disse por e-mail. “Para tentar manter em mente que algo de bom logo voltaria a acontecer.”
O ano de isolamento fez Brendda – a cearense autora de Cais do Porto, que lhe valeu o Troféu HQ Mix de novo talento (desenhista) em 2020 – pensar para que serve fazer arte quando tanta gente está trancada em casa. E também no inverso: sair, encontrar os amigos, fazer festa.
É a mistura que resultou no trabalho novo, Apartamento 501. “É sobre uma sexta-feira de pré-carnaval em que quatro amigos decidem sair para um karaokê, mas a crise de pânico de uma delas faz os planos mudarem”, conta a quadrinista. “Trata de amizade, mas também de se conectar com o que a gente tem de melhor.”
Brendda começou a publicar páginas de Apartamento 501 no Twitter no ano passado. Agora está trabalhando no roteiro, pretende postar nas suas redes em capítulos e depois juntar tudo num álbum de (pelo menos) 60 páginas.
"Torço para que o ano que vem seja melhor para todos nós e para que possamos voltar a ter eventos de quadrinhos logo."
A2 AOS 10
Paulo Crumbim e Cris Eiko são pequenos e ligeiros. Pra mim não parece, mas vai fazer dez anos que eles lançaram seus Quadrinhos A2 – a série auto-casal-biográfica sobre ser quadrinista, sobre São Paulo, sobre a vida e sobre o Pino, o salsichinha coadjuvante. 2021 é ano de aniversário.
Nesses dez anos, eles fizeram duas Graphic MSP da turma do Penadinho. A segunda, Lar, saiu no ano passado e é a que eles elegem como seu melhor de 2020.
Pra 2021, eles têm planos juntos e à parte. Juntos, eles querem fazer “a reimpressão/reedição comemorativa do primeiro volume de Quadrinhos A2” (que está esgotado). A série tem 6 volumes (que você compra aqui) ou, como eles chamam, “temporadas”.
Eiko também quer preparar algo solo e inédito, mas ainda não me contou o que é. E Crumbim vai lançar Andei pelas fissuras e te trouxe flores, pedras e algumas migalhas – uma coleção dos zines que ele vem lançando desde 2017, mais material inédito.
“Torcemos todos aqui por um 2021 melhor”, disse o casal.
CANCELEM O JUSTICEIRO? TRUMP DE CAPITÃO AMÉRICA? E A MARVEL NÃO DIZ NADA?
I find it incredibly telling that this photo hasn’t gone viral. And almost no one is mentioning the bombs, ammunition, and accelerants that were found. They were literally calling for Nancy Pelosi’s head and said they were going to take hostages. This wasn’t a peaceful protest. pic.twitter.com/4KIyNUNVtO
— Dylan (@dyllyp) January 7, 2021
A invasão do Capitólio dos EUA, em Washington, no dia 6 de janeiro, teve repercussões nos quadrinhos. Especificamente para a Marvel: no meio das imagens, se vê os manifestantes pró-Trump usando os símbolos do Capitão América e do Justiceiro.
Olhe bem o peito do manifestante na foto acima.
No caso da caveira, a discussão já é de anos. O símbolo do Justiceiro foi apropriado por militares dos EUA no Afeganistão, adotada por policiais gringos e até pela polícia brasileira. A tendência mereceu inclusive uma resposta nas HQs. No ano passado, o quadrinista Nate Powell (A Marcha) fez uma HQ excelente sobre como a caveira virou símbolo das milícias no interior dos EUA – leia aqui.
Na semana passada, dois jornalistas – Patrick Ross no AIPT e Mike Avila no SyFy – publicaram textos defendendo que a Marvel tome alguma atitude quanto a Frank Castle.
Ross foi mais comedido: sugere que, quem sabe, o Justiceiro volte às suas raízes de vilão – ele foi criado como vilão, em 1974. Mas diz que a situação com o logo da caveira está tão feia que talvez seja melhor a Marvel aposentá-lo.
Avila, que afirma no título que “chegou a hora da Marvel aposentar a caveira do Justiceiro”, propõe que a editora contrate alguém para repaginar o anti-herói e tome distância dessas associações com milícias, polícia truculenta e fascistas.
Avila, porém, também entrevistou Garth Ennis – que escreve HQs do Justiceiro há mais de vinte anos – e Ennis, à moda Ennis, não mede palavras pra dizer que cancelar o Justiceiro é uma besteira.
“Ninguém vai dizer que a bandeira dos EUA virou símbolo fascista e devia ser tratada como símbolo fascista só porque um bando de metidinho a fascista usou ela de símbolo”, ele diz. “Duvido que alguém vá dizer que qualquer babaca que vestiu a caveira do Justiceiro [no Capitólio] teria agido de outro jeito se o Justiceiro não existisse. Eles fizeram aquilo porque o líder dessa gente, aquele cocô demente, botou na cabeça deles que a eleição foi roubada. Se você se dispõe a tomar uma atitude violenta com base nisso aí, não é a porra da camiseta que vai fazer diferença nos limites que você ultrapassa. Aliás, camiseta não faz diferença nenhuma.”
(Ennis também já conversou com o Omelete sobre esse assunto.)
Quanto ao uso dos símbolos do Capitão América – como o Trump vestido de Capitão da imagem acima – o filho de Jack Kirby deu uma declaração que circulou por jornais como o Guardian. Veja a íntegra aqui no Omelete.
J.M. DeMatteis, que escreveu aquela fase excelente do Capitão nos anos 1980, também fez uma declaração potente no Twitter: “O Capitão que eu conheço e que eu escrevi não representa a realidade dos EUA – ele representa o sonho americano: o que temos de mais nobre e de melhor. Verdade, integridade e compaixão.”
Steve is a truly decent man, who embraces all Americans—of every color, religion, sexual orientation—and I tried to reflect that in my stories. During my run, Steve's girlfriend was Jewish and his two best friends were a Black man, the Falcon, and a gay man, Arnie Roth.
— J.M. DeMatteis (@JMDeMatteis) January 14, 2021
A Marvel foi procurada por todos os veículos, mas não se pronunciou. O site Graphic Policy supõe por que ela nem vai se pronunciar: Ike Perlmutter, presidente da Marvel, e sua esposa doaram 21 milhões de dólares para uma das organizações que promoveu a invasão ao Capitólio. O casal também financia campanhas de candidatos de direita nos EUA – a de Trump, inclusive – e foi conselheiro em uma das iniciativas do governo Trump.
Não se sabe quanto envolvimento Perlmutter tem no dia a dia da Marvel Comics (mas ele já entrou em queda de braço com o Marvel Studios – e perdeu). De qualquer maneira, ele é o chefe, né?
IMBATTABLE NO BRASIL
Foi o Pedro Bouça, tradutor e crítico de HQ, que me avisou: “Imbattable no Brasil!” Ele tinha descoberto por um desses sites de licenciantes que avisam quando os direitos de publicação são vendidos para cá.
Imbattable é a criação do francês Pascal Jousselin que sai desde 2013 na revista Spirou e tem feito sucesso no mercado franco-belga em álbuns. O sucesso vem das brincadeiras criativas de Jousselin e seu super-herói com a linguagem dos quadrinhos.
Imbattable, por exemplo, salva um gatinho preso numa árvore cruzando o entrequadro e pegando o bicho no quadrinho inferior. Ele desafia as regras da perspectiva destruindo um muro com um bombom, já que o bombom é maior no primeiro plano. Uma pistola dispara num quadrinho e as balas atingem cenas de antes e depois.
“Sem dúvida é a HQ infanto-juvenil mais interessante da última década”, diz Bouça. O volume 1 ganhou o prêmio infanto-juvenil da associação de críticos e jornalistas de HQ da França em 2017. O New York Times destacou a HQ quando foi lançada nos EUA, no ano passado – com o nome Mr. Invincible.
Quem vai lançar no Brasil? A Saber e Ler, editora de material infantojuvenil que vai fazer a primeira investida no quadrinho franco-belga. De quadrinhos, eles já publicam a série Os Caras Malvados, do australiano Aaron Blabey.
“Conheci Imbattable quando ele ganhou o prêmio de melhor quadrinho na Feira de Bolonha, no ano passado”, me disse Samara Krauss, publisher da Saber e Ler. “Os Caras Malvados é nosso best-seller e recebemos muitas críticas boas de crianças que não gostavam de ler e, ao ganhar a coleção, voltaram a se interessar pela leitura. Estávamos procurando outro quadrinho que se encaixasse no perfil da editora. Adorei Imbattable!”
A série será traduzida por Janice Florido, mas ainda não tem título em português. O primeiro volume sai aqui em setembro e o segundo deve vir em seguida. Jousselin está para lançar o terceiro álbum na França.
UMA PÁGINA
De ResiduaA, do espanhol Sao. (ou Alfredo Santos), HQ abstrata que está saindo no Brasil pelo selo independente Risco Impresso.
Segundo a descrição: “Tomando emprestado o título do livro Residua, de Samuel Beckett, termo com o qual os alquimistas se referem aos resíduos inutilizáveis que sobreviveram as suas manipulações, ResiduaA pretende recolher a memória do estudo e esforço desenvolvido ao longo dos anos por Sao. em torno das possibilidades gráficas e expressivas do desenho aplicado à linguagem cômica.”
UMA CAPA
De Steve Lightle, para Spider-Man Saga n. 2. É uma capa de quase trinta anos e eu comprei há quase trinta anos por causa da capa.
Lightle morreu no último dia 8, de parada cardíaca e complicações da Covid, em Kansas City. Tinha apenas 61 anos – o que significa que começou bem cedo nos quadrinhos, onde trabalhava desde 1984. Ficou mais conhecido pela sua passagem por Legião dos Super-Heróis e por um monte de capas. Gosto muito da época em que ele era o capista de Classic X-Men.
A família de Lightle lançou uma campanha para arrecadar dinheiro para o funeral e outros custos. Você pode contribuir aqui.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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