Nesse momento, o Brasil está pegando fogo. Literalmente. Nesse momento, o Brasil tem quatro milhões e meio de notificados. Tem um Brasil trancado em casa e tem um Brasil que está na praia. Tem um Brasil dos bots e um Brasil que quer fugir do Brasil. E tem também o Brasil que, ainda bem, não para de fazer quadrinhos.
Conversei com dez quadrinistas nacionais que estão lançando, ou produzindo, ou programando, ou pensando e repensando seus projetos. Sozinhos ou em colaborações. Tem muita coisa acontecendo nos quadrinhos, e tem quadrinhos para todos os gostos.
Tem autobiografia, fantasia oitentista, adaptação literária, histórias reais, histórias de bar, histórias das quebradas, pancadaria e terror. E tem mais. O quadrinho brasileiro não para. Ainda bem.
PEDRAPOME
A coletânea do pernambucano Rogi Silva acabou de ganhar o Prêmio Dente de Ouro – da Feira Dente de publicações independentes, de Brasília.
São quatro histórias. A que dá o título é sobre “um ser que atravessa uma ilha para entrar no vulcão e encontrar um amigo”, segundo conversa com o próprio Rogi. E se desdobrou na webcomic Pumii do Vulcão, que o autor está publicando no Instagram.
As outras histórias: “Aterro: como uma criança percebe e se relaciona com a cultura das cheias do canal, com os moradores e a violência em seu bairro. Mergulhão: sobre uma mulher que mora em uma palafita e resgata objetos de seus antigos amigos e vizinhos mergulhando na maré, enquanto resiste ao comportamento predatório da especulação imobiliária. E Planta: quadrinho mais existencial, onde abordo pensamentos conflitantes sobre auto imagem.”
ALICE ATRAVÉS DO MURO
“A história de uma família que fugiu de um mundo que está até hoje preso nos anos 1980. Agora eles precisam voltar.”
Alice é criação de dois paulistanos: Eric Peleias e Luke Ross. Peleias é o roteirista de Como Fazer Amigos e Enfrentar Fantasmas, Últimos Deuses e outras HQs. Ross, ou Luciano Queiroz, é o desenhista que trabalha há mais de vinte anos para o mercado norte-americano (Star Wars, Conan, Venom), num raro trabalho para o quadrinho nacional. As cores são de Marco Lesko.
“É uma história sobre encontrar seu lugar no mundo, onde quer que ele seja”, disse Peleias, em conversa por e-mail. O quadro acima tem estreia exclusiva no Omelete.
Alice Através do Muro está no Catarse. Atingiu a meta em duas semanas e continua à venda por lá até 30 de outubro. Apoie aqui.
ACONTECEU COMIGO
Gordofobia, machismo, capacitismo, homofobia. Nenhuma mulher tem vida fácil e nenhuma vida é igual à outra. Laura Athayde, manauara que mora em Belo Horizonte, passou quatro anos reunindo histórias de mulheres – histórias tão pesadas quanto variadas – e transformando-as em quadrinhos.
“A minha ideia era promover o diálogo e a empatia sobre questões que afetam nossas vidas e nem sempre são levadas a sério”, diz a autora. “Foi a oportunidade de olhar através de outros olhos pelo tempo que dura uma página de quadrinhos.”
O material foi publicado no Instagram, como a história abaixo, e agora sai compilado pela Balão Editorial. Compre aqui.
A TRAGÉDIA DOS CÃES
Depois de entrar na cabeça dos autores beat em Burroughs e Kerouac, depois dos prêmios por Carolina, João Pinheiro vai desenhar o mundo que enxerga pela janela.
“Cães é o nome do pixo de dois amigos, Maurinho e Isaías, moradores da periferia de São Paulo”, João me conta via Facebook. “Filhos da classe operária, tentam se sustentar com trabalhos na construção civil, pequenas fábricas locais e todo tipo de bico sem futuro. Nesse contexto de poucas oportunidades de ascensão social, é por meio da pixação que procuram afirmar suas identidades.”
“Apesar de todas as dificuldades, os dois amigos tentam vencer e amadurecer enfrentando os problemas, na esperança de que logo as coisas possam melhorar. Mas nem tudo acontece como eles planejam e um destino trágico os aguarda.”
O autor está registrando o desenvolvimento da HQ num website próprio, http://atragediadoscaes.com.br/ . Sai pela editora Veneta, no ano que vem.
CONTOS DA SELVA
Estados Unidos, Itália, Espanha, Reino Unido, França, Polônia, Portugal, Holanda, Romênia, Grécia e Turquia. São os países em que A Revolução dos Bichos, o último projeto do gaúcho Odyr – que adaptou o livro de George Orwell – já saiu ou está por sair.
De Orwell, Odyr vai passar para Quiroga – Horacio Quiroga (1878-1937), escritor uruguaio conhecido pelos contos fantásticos. Contos da Selva será um álbum com adaptações de duas histórias: “El León” e “La Patria”. Sai pela Quadrinhos na Cia. em 2022.
“Lembro claramente quando comecei esse projeto”, Odyr diz em entrevista à agência literária Villas-Boas & Moss. “Já estávamos no segundo turno da eleição e estava bastante claro que Bolsonaro tinha chances, o horror era muito mais palpável. Mais do que responder à realidade, eu queria fugir dela, queria fazer algo que trouxesse alegria, primeiro para mim, depois para os leitores. Estava me sentindo oprimido pelo compreensível mas paralisante pessimismo e visão apocalíptica que dominava (e ainda domina) a cultura.”
“Sou leitor do Quiroga de longa data, mas nesse dia encontrei em um sebo uma edição dos Contos Completos dele. Quando abri o livro ao acaso e vi uma história que começava com ‘uma cidade no deserto onde todos eram felizes’. Pensei: é isso que quero fazer.”
As duas páginas acima estreiam com exclusividade no Omelete.
SAVANTS OF SOUNDS
Um mundo onde todos os sons do planeta têm forma física, consciência, interagem entre si. E, se você for uma criança especial, você enxerga os sons.
A dupla formada pelo paulista Gabriel Arrais e o capixaba Abel, que já fez Necromorfus e Pettrus, está lançando Savants of Sound em minissérie. O primeiro volume saiu no ano passado, o segundo está no Catarse agora – em campanha ainda sem data definida pra acabar.
"Dividimos Savants of Sounds em quatro partes”, diz Arrais, na divulgação. “Já que o gibi apresenta personagens que se originaram a partir de instrumentos musicais, estruturei a história como uma boa canção pop, na qual o primeiro capítulo foi a Intro, agora teremos o Verso, e os próximos serão Refrão e Solo.”
TRAJE DE RIGOR
“‘Traje de Rigor’ é conto de um livro do Marcos Rey chamado O enterro da cafetina. Tinha esse livro em casa quando eu era criança e eu gostava muito da capa, que era uma edição dos anos 70, ilustrada pelo Negreiros.”
Gustavo Lambreta tinha 13 anos no seu primeiro contato com a história de Marcos Rey. Teve vontade e até estímulo em casa para desenhar o conto – “mesmo que tratasse de boates, putas, gigolôs etc.” –, mas acabou deixando pra lá. Anos depois, Traje de Rigor virou seu trabalho de conclusão na universidade – orientado pelo célebre Luiz Gê.
Publicado de forma independente em 2015, a HQ do paulistano – que mora em Montevidéu – saiu há poucos dias em nova edição digital pela editora Conrad.
“O livro chegou nas mãos do pessoal da Conrad, que me chamaram para ver se eu tinha o interesse em republicar. Topei, mas refiz toda porque eles queriam um formato diferente e o meu traço já tava um pouco diferente (um pouco de preciosismo da minha parte)”, Lambretta conta em conversa via Instagram.
O conto trata de quatro amigos numa noitada pelos bares de São Paulo. Um deles carrega um pote de leite em pó, outro foi cantor de óperas, o terceiro porta um revólver e o quarto está vestido para uma festa chique.
CRÔNICAS DE CALAVERA
Um motorista, preso entre a vida e a morte nas ferragens do carro, enfrenta as decisões que tomou durante a vida e o temor de que, com elas, precisará descobrir a que mundo pertence. No meio disso, discursos inflamados de cidades vivas que existem somente na cabeça de uma velha entidade arquitetônica e as músicas melancólicas de uma banda de rock de outra dimensão que só consegue se comunicar através das palavras de James Joyce.
É complexo, é estranho e é assustador. E é o segundo volume das Crônicas da Calavera, do curitibano João Ferreira, agora acompanhado do fluminense Diego Vieira no roteiro. O primeiro volume saiu em 2016, o terceiro já está em produção. Cada um traz histórias independentes.
“Calavera é uma entidade além do tempo e do espaço, da vida e da morte, conduzindo pessoas à beira da existência em histórias repletas de metalinguagem, digressões e encontros”, explica Diego, em conversa por Twitter.
O segundo volume chama-se Memento Mori. Ainda não há previsão de lançamento.
PIGMENTO
Anunciada esta semana, Pigmento é a primeira graphic novel da carioca-que-mora-em-São-Paulo Aline Zouvi. Sai pela Quadrinhos na Cia. no ano que vem.
Ainda lacônica, a sinopse é: “Através do universo da tatuagem, a HQ aborda questões como amor, gênero, memória e a construção de si.”
Zouvi circula pelas feiras de quadrinhos independentes há anos, com HQs como Síncope, Óleo sobre Tela e Pão Francês. Também é ilustradora, poeta e tradutora.
BRIGA
Fenômeno na internet, HQ de Briga ganhou milhares de seguidores e gerou filas na última CCXP. O trabalho do desenhista Silva João, de Rio Claro-SP, tem um protagonista chamado Protagonista, um antagonista chamado Antagonista e um rival chamado Rival Amigável. E eles brigam porque esse é o nome do gibi.
O volume 2 de HQ de Briga começou a ser publicado em capítulos este ano, via Twitter e Tapas. O segundo capítulo de “Como o Bronx foi conquistado” saiu há poucos dias.
“Vem aí uma reviravolta atrás da outra e finalmente revelações do que diabos está acontecendo”, João conta por Twitter.
HQ de Briga 2 também vai ter versão impressa. Mas só em 2021.
A LENDÁRIA GRAPHIC NOVEL DA LAERTE
Todo mundo gostaria de ver uma graphic novel da Laerte. E faz anos que todo mundo gostaria de ver uma graphic novel da Laerte. Se você acha “graphic novel” muito pedante, pode chamar de álbum, história longa, narrativa extensa, como quiser – desde que seja da Laerte, que todo dia tem uma tira ou charge brilhante, e que já fez vários contos antológicos em quadrinhos.
Gabriela Güllich entrevistou Laerte e publicou a conversa em quadrinhos no site Mina de HQ. E a notícia é que a graphic novel da Laerte deve acontecer… mas nem ela sabe quando.
“Em tese, já terminei uma vez e achei que não funcionava. É um padrão muito acima do que eu costumo fazer. Eu sou uma autora que na maior parte do tempo faço tiras, que são uma tripinha com quatro quadrinhos. E me meto a fazer uma história que, numa das versões, já chegou a 400 páginas, sabe? O que eu vou fazer com isso? Não sei se eu tenho vida mais pra fazer isso!”, diz a quadrinista que completa 70 ano que vem.
A HQ será parcialmente autobiográfica, com memórias de fins dos anos 1960 e início dos anos 1970. “Eu tô refazendo e centrando tudo dentro do ano de 68. Tá mais palpável assim.”
“Tem alguma data planejada pra finalizar?”, pergunta Güllich. “Ano passado eu tinha uma meta de data, mas furou tanto que resolvi deixar pra lá.”
Você lê a entrevista completa (inclusive com os gatos que interromperam a conversa) aqui. Por enquanto, ficamos chupando o dedo esperando essas, quem sabe, 400 páginas de Laerte.
QUEM LÊ NO BRASIL
Na semana passada, publiquei os resultados de uma pesquisa sobre leitura de quadrinhos na França. Esta semana, o Instituto Pró-Livro publicou os resultados de 2020 da pesquisa Retratos da Leitura – não só sobre quadrinhos, mas sobre a leitura do brasileiro em geral.
A imprensa já divulgou os resultados desanimadores: o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019, a queda entre leitores de classe A e B foi a mais alta e o maior motivo para pegar um livro continua sendo a leitura obrigatória na escola.
O percentual de leitores de quadrinhos caiu de novo. Na pesquisa de 2011, 19% dos pesquisados tinham lido uma HQ no ano anterior. Em 2015, 13%. Nesta última pesquisa, 11%.
Lê mais gibi quem está no Ensino Fundamental I (até 5º ano) ou no Ensino Superior: 13% e 14% de cada faixa de escolaridade, respectivamente. Como na pesquisa francesa, o interesse por quadrinhos cai conforme a idade: 21 a 22% das crianças de 5 a 13 anos lê gibi; dos 14 aos 59 anos, o índice fica por volta dos 10%. Os velhinhos de 70 ou mais registram 1% de leitores, o que é praticamente erro estatístico. (Estamos longe dos um em cada quatro aposentados franceses lendo Asterix.)
Também tem um registro estranho na pesquisa, que embolou “Histórias em Quadrinhos, Gibis ou RPG” como categoria única nas perguntas. HQ e gibi, ok, tratamos como sinônimos. RPG é outra coisa, certo?
Questionado, o Instituto Pró-Livro deu a seguinte resposta, via assessoria: “Seus questionamentos são muito pertinentes. Vamos levá-los à comissão da próxima pesquisa.”
Os resultados completos da pesquisa estão aqui.
(o)
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.