Quino morreu há dois meses. Não faltam livro nas lojas, provavelmente nem na sua estante, para lembrar do criador de Mafalda e de tantas charges brilhantes. Mas uma coleção inédita – não de tiras inéditas, mas inédita neste formato – está para sair.
É Mafalda – feminino singular, seleção de tiras sobre mulheres da perspectiva da menina. Mafalda sempre foi feminista – mesmo quando perdia alguma discussão com Susanita, a amiguinha conservadora, ou quando dizia que sua mãe que lava, passa, costura e cozinha “brinca de ser medíocre”.
O livro tem uma introdução exclusiva à edição brasileira, da professora e tradutora Maria Clara Carneiro. Alguns trechos abaixo:
“Na história das histórias em quadrinhos, há um bom número de menininhas de vermelho: a saia de Nancy (Periquita), os vestidos de Little Lulu (Luluzinha), Mônica, Mafalda. Meninas um tanto brutas, quase todas com laços também vermelhos sobre os cabelos nunca iguais: meninas que resistem, fortes, destemidas. Tantas menininhas famosas, e Mafalda, porém, é a única cujo vestidinho vermelho ganha conotações políticas. Ela é a mais nova delas, e a mais libertária. Essa ‘contestadora’ — como já apontava Umberto Eco em prefácio, ao publicá-la pela primeira vez na Itália — seria uma grande síntese dos anos 1970 que ela introduziu, tempos de inconformismo e recusa ao status quo.
(...)
Lá naquele prefácio, Eco traçou um paralelo entre Mafalda e Charlie Brown, uns vinte anos mais velho que a menininha. De fato, apesar do vermelho e da brutalidade comum às já citadas, Mafalda se assemelha muito mais a Charlie Brown, de Schulz, pela estrutura mais ancorada no texto aguçado do que nas piadas visuais e por certo gosto pela filosofia — o ‘Minduim’, como lembra Eco, é Freud; Mafalda é Che Guevara — justamente porque talvez fosse impossível não pensar em revoluções sendo sudaca, naquele momento.
Quino desenha tiras inteiras que remetem aos desenhos de Schulz, como as crianças sentadas, de costas, vasculhando o horizonte ou o futuro. Dele, Quino também tomou emprestadas as linhas curvas e o tracejado das linhas de movimento que vira pontilhismo em alguns momentos. E observem a boca grande da Mafalda quando grita feito Snoopy, e Susanita chorando que nem o Charlie Brown. Também prestem atenção às letras e balões que expandem e tomam todo o espaço das páginas, traço comum em autores de sua geração, como Millôr Fernandes. Ambos perceberam a importância das letras tomando o espaço dos desenhos no quadro. Os narizes, porém, se por um acaso Quino tomou emprestados de alguém um dia, hoje são todos dele. E é possível encontrar o nariz ‘Quino’ nos traços de seus seguidores.
Charlie Brown e Mafalda também sentem muita angústia diante do mundo, e Quino nos mostra a pequena revolucionária ao lado de um globo, com quem ela conversa e a quem tenta socorrer, mesmo que de forma cosmética. Charlie Brown vivia em um mundo sem adultos; Mafalda vivia em ‘uma contínua dialética’ com o mundo dos grandes, mundo esse ‘que não estima, não respeita, hostiliza, humilha, repele’ — nos termos de Eco. Nisso, sua grande adversária parece ser justamente a mamãe, cujo sacrifício ao lar é visto por Mafalda como covardia e até burrice.
Essa feminista em formação tenta emancipar seu corpo dos papéis atribuídos a seu gênero e vasculha em seu próprio corpo analogias do mundo. Enquanto a amiga Susanita acredita que até seu dedo indicador foi feito para ‘dizer sim’ aos homens e projeta carreiras para filhos que ainda nem pode ter, Mafalda parte para a agressão contra ‘Eles’, contra a amiga e contra a mãe. Nossa protagonista não admite as posições ‘delas’, não admite o ‘obscurantismo’ patriarcal, muito menos os valores kitsch da ideia de família. A cultura, ela percebe, é um bem que os poderosos tentam dilapidar, trocando o direito ao conhecimento por consumo. À professora que a ensina a escrever ‘Minha mamãe me ama’, ela exige voltar a ‘assuntos mais importantes’.”
Mafalda – Feminino Singular tem 108 páginas de tiras. A proximidade da morte de Quino foi coincidência: a WMF Martins Fontes já tinha agendado o livro no ano passado. A tradução é de Monica Stahel e a previsão de lançamento é para início de dezembro. Está em pré-venda aqui.
O MONSTRO QUE VIROU MONSTROS
Diz a lenda – e algumas pessoas que estavam lá – que, no início dos anos 1980, Barry Windsor-Smith chegou na Marvel com uma graphic novel do Hulk praticamente pronta, que ele havia escrito e desenhado. Seria a história da infância de Bruce Banner, de como um pai abusivo acabou criando a personalidade que ia se projetar em monstro verde.
Windsor-Smith é um desenhista lento. Com a quantidade de detalhe nas páginas, impossível não ser. A graphic novel devia ter saído em 1984. Não saiu. As páginas que ele mostrou na Marvel circularam entre colegas. O roteirista Bill Mantlo usou a história do pai abusivo na série mensal do Hulk. Achou que a graphic novel já teria sido publicada ou fez um plágio descarado, ninguém sabe. Windsor-Smith não gostou e largou o projeto.
Mudando alguns detalhes aqui e ali para apagar o Hulk, acrescentando outros, a graphic novel podia virar outra coisa. Windsor-Smith reavivou o projeto na Dark Horse, mas se desentendeu com a editora. Levou na DC/Vertigo, mas a linha não topou algumas palavras de baixo calão – baixo até pra quem publicava John Constantine.
Quase quarenta anos depois, a graphic novel vai sair. Chama-se Monsters, tem 380 páginas e vai ser lançada pela Fantagraphics em janeiro. A descrição tem algo de Capitão América: começa em 1964, quando o jovem Bobby Bailey quer se alistar no exército e vira cobaia de um programa experimental do governo.
E a descrição segue: “Em parte drama familiar, em parte thriller político, em parte jornada metafísica, um retrato intimista de pessoas lutando para reaver suas vidas e uma odisseia política épica, que atravessa duas gerações na história dos EUA.”
Pela bitola, por esse histórico conturbado, pelos 71 anos de Windsor-Smith e seu currículo – Conan, Arma X, aquelas edições brilhantes de X-Men – é obra-prima automática.
MORRISON EXPLICA A COVID
Você já deve ter lido por aí que Grant Morrison se declarou não binárie e gender queer. E que é desde que tinha uns 10 anos, embora não tivesse as palavras certas. “Os termos que existiam para dizer o que eu fazia e como eu me sentia eram poucos e raros… Hoje se tem um vocabulário que é novo, em que as crianças podem descobrir exatamente onde ficam no ‘círculo cromático’ do gênero e da sexualidade”.
Não há dúvida de que é um acontecimento, importante para a representatividade. Mas, como era uma entrevista com Grant Morrison, a “revelação” foi só um exemplo dentro de uma resposta sobre linguagem e magia. Aliás, elu termina a mesma resposta em que abriu as portas do não binarismo assim:
“Assim que a gente passar a um idioma de emoji sem base no alfabeto romano, para começarmos a fazer comunicação telepática via rádio, as coisas vão mudar mais uma vez.”
Bom, era uma entrevista sobre magia e as crenças mais esotéricas de Morrison, então não dá pra se surpreender que elu responda com magia, esoterismo e emojis.
Mas, um pouquinho antes, num trecho menos comentado, Morrison nos presenteou com uma explicação sobre o novo coronavírus e a Covid-19. Tem a ver com a chegada do Eon de Maat, que alguns magos dizem que está para acontecer a qualquer momento (ou já começou):
“Qual seria a doença característica de Maat? Podia ser uma doença com disseminação em rede, uma moléstia viral que atacasse toda a humanidade. O que ia acontecer se ela esvaziasse os lares dos antigos deuses, só porque pode? Lembra que, no auge do primeiro lockdown, todas as igrejas ficaram vazias, os estádios ficaram vazios, assim como todas as mesquitas, todos os templos? O deus Pai não tinha pra onde ir.
Sei que no Reino Unido, e com certeza nos EUA, houve um levante curioso de louvor aos profissionais de saúde. Aqui, toda quinta-feira as pessoas começavam a bater panela e, basicamente, agradecer pela existência do espírito que cuida, do espírito caridoso. Estávamos fazendo uma coisa religiosa, ritualística. Isso é Maat.”
Morrison está escrevendo Lanterna Verde na DC, tem mais uma graphic novel de Mulher-Maravilha: Terra Um a sair no ano que vem e foi anunciade como nome-chamariz de uma nova linha de HQs da Universal – com quem estava trabalhando numa adaptação de Invisíveis para a TV, ainda sem novidades.
A entrevista completa está no site Mondo 2000.
[UPDATE: Como apontou o leitor Diego Jaco, Morrison manifestou recentemente que prefere ser tratado por termos não-binários, de modo que atualizei o texto conforme esta preferência.]
O CHACAL
Tony Carson: Chacal foi mais uma dessas criações curiosas dos quadrinhos internacionais como Marvelman e O Judoka: quando uma editora não tinha mais o que importar de um personagem que fazia sucesso, dava sequência à série com versão nacional.
Foi o caso da editora carioca Vecchi com Judas, o faroeste da Bonelli que teve só 16 edições entre 1979 e 1980. Aqui, o personagem comandava a revista Chacal – que ganhou edição 17. Melhor: foi até a 29.
A solução adotada pelo editor Ota Assunção (o famoso Ota da Mad) para dar sequência à revista foi criar um personagem novo: Tony Carson – Chacal. O caçador de recompensas seria mais casca grossa e teria menos escrúpulos que os caubóis da Bonelli tipo Tex e Chet.
Antônio Ribeiro ficou com os roteiros – ele escrevia pulps de faroeste, que assinava como Tony Carson – e o paraense Antonino Homobono (1953-2001) ficou com a concepção visual do personagem.
O material esquecido está ganhando nova edição no Brasil. Uma edição em formato Bonelli com duas histórias de Tony Carson – Chacal: “Pacto Rompido”, com desenhos de Homobono e “Valiosos Cadáveres”, desenhada por Jordí Martinez. Está em campanha no Catarse, com recompensas a partir de R$ 36.
UMA CAPA
De Sonhonauta, capítulo 6, de Shun Izumi. O autor paulista assusta cada vez mais nas capas da série digital – e nas páginas internas, que mostram como ele transita entre estilos e técnicas. É uma das surpresas do ano no quadrinho brasileiro.
As edições 1 a 5 estão disponíveis na Amazon, e a 6 sai na semana que vem. Cada uma custa só R$ 4,90. A edição é da Conrad.
UMA PÁGINA
Uma dupla, de L’Âge d’Or, volume 2, por Cyril Pedrosa, com participação de Roxanne Moreil no roteiro.
Lançado há pouco na França pela Dupuis – e na lista de mais vendidos –, é a conclusão de uma aventura medieval que se destaca no traço à moda Disney de Pedrosa (Três Sombras), sem falar no trabalho magistral de cor e de umas experiências curiosas de movimentar seus personagens pelos cenários. Como na dupla acima.
A história é de uma princesa que tem que reaver o trono que lhe é de direito, usurpado pelo irmão. Você TEM que clicar aqui para ver o preview com mais umas 30 páginas.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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