Qual é a grande notícia de 2020? A grande notícia de 2020 é que a gente ainda existe.
No sentido de que é uma grande coisa você estar aqui, vivo, viva, lendo uma coluna sobre gibi, num ano em que morreu tanta gente que não esperava morrer de gripe. Mas também em outros sentidos: de que você ainda está lendo gibi, que talvez você esteja produzindo gibi e de que gibis ainda existem.
Porque teve um momento aí, no início do ano, em que se achou que eles podiam deixar de existir.
A grande notícia do ano é que não só os quadrinhos, mas todo entretenimento resistiu e teve, mais do que em muito tempo, a função de nos distrair do mundo lá fora – às vezes o inacessível mundo lá fora.
Lá por março, eu lembro de gente muito inteligente dizendo que a pandemia ia arrasar a economia e íamos cair em mais uma recessão. A primeira coisa que as pessoas iam parar de comprar? Entretenimento, né. Você tem que poupar pra proteína e pro papel higiênico.
Nos EUA, o mercado direto de quadrinhos parou mais de um mês. Um monte de artistas recebeu ordens de literalmente soltar o lápis. Cronogramas mudaram e muitos projetos entraram em pausa. No Brasil, todas as editoras reorganizaram os calendários, prevendo uma queda brusca nas vendas.
Não foi o que aconteceu. Ainda não. Esteja você (estejamos nós) jogando tudo no cartão de crédito ou torrando as economias, a humanidade em pandemia de 2020 gastou em quadrinhos e livros, assistiu séries e filmes em casa, zerou games. Não muito mais do que em outros anos – mas mais do que o esperado.
(Esta coluna também surgiu para entreter você e me entreter. Ela nem existia até agosto.)
A solução foi se distrair. A conta que venha depois. O importante é se manter vivo e não contaminar ninguém. E eu recomendo você fazer uma lista de gibis que foram motivo para ficar vivo em 2020. Eu tenho a minha.
A MELHOR HQ DE SUPER-HERÓI DE 2020
É de uma super-heroína. Que é uma atriz pornô do tamanho de um arranha-céu. E o arqui-inimigo é a caixa de comentários do G1.
O desenho é um desbunde do milimetricamente preciso. Você fica tenso como num gibi de super-herói de quando tinha oito anos e você ri alto mesmo sendo um adulto que não acha graça de nada.
Eu já tinha o autor Hiroya Oku em alta conta por causa de Inuyashiki, uma das grandes histórias de super-herói desse século. Gigant estreou no Brasil este ano, também pela Panini, com tradução de Caio Suzuki.
Começou morna, estranhinha, com um erotismo meio grosseiro, bobo. (E é bobo mesmo, mas bobo engraçado.) Mas os volumes 3 e 4 são o ápice do que eu descrevi no primeiro parágrafo: aventura absurda levada a sério, com uma tensão que eu não sentia desde… bom, desde Inuyashiki.
Saíram cinco volumes durante o ano. O sétimo saiu há pouco no Japão, por isso a previsão é de poucos números por aqui em 2021. Se ainda não leu, descubra logo.
A MELHOR HQ DE BONS SENTIMENTOS DE 2020
“Não é muito católica?”, perguntou um amigo.
Eu não achei. Sei que Aprendendo a Cair é uma HQ encomendada por uma instituição católica para comemorar os 150 anos de Neuerkerode, a vila alemã totalmente administrada por gente com deficiências mentais de vários tipos. Fora isso, a impressão é que o autor Mikael Ross não teve que seguir nenhum outro requisito. Não tem nada de carola.
A história de Noel, o menino que perde a mãe e vai para Neuerkerode, tem as cenas Disney obrigatórias, tocantes, tanto de partir o coração quanto de elevar o espírito. Mas não se esconde o lado feio de ter e de conviver com doenças mentais, em que não dá para esperar constância dos amigos nem de você mesmo.
É brutal, é engraçada, é triste, tem desenho e cores espetaculares e é diferente de tudo que apareceu nos quadrinhos deste ano. Saiu pela Nemo em agosto, com tradução de Renata Silveira.
O MELHOR BATMAN DE 2020
A cada ano saem 342 histórias inéditas do Batman. Todo autor que vai encarar uma nova história do Batman deve se perguntar: como que eu faço com o Batman o que ninguém fez com o Batman? Se for bom autor, no caso. E mesmo que façam tudo isso, raramente dão conta.
Warren Ellis e Bryan Hitch conseguiram. O Túmulo do Batman tem um arremedo de trama – Batman investiga um assassinato misterioso, a coisa cresce, Gotham City se vê sob ataque de uma milícia superarmada – só para amarrar cenas de tiro, porrada e bomba. E umas ceninhas mais intelectuais, brilhantes, do detetive entrando na mente do assassino. Mas o negócio mesmo é ação.
Ellis tem uma trabalheira para que pareça que a HQ não deu trabalho. Os diálogos são mínimos, lapidados, a caracterização de Batman e de Alfred tem daquelas cenas que, se fosse em filme, iam virar gifs de reação.
E, na parte da ação, Bryan Hitch fazendo o melhor mangá que um ocidental consegue.
(E eu sei que é feio falar do Ellis, mas é o que temos. Você não vai ler quase nada dele daqui em diante.)
A MELHOR HQ NO SEU E-MAIL EM 2020
Raphael Salimena produz a série Linha do Trem desde 2006. É uma série sem personagem nem tema fixo: é a ideia que surgir na cabeça do Salimena e que caiba em quatro quadros: tiração de sarro com cultura pop, com polarização política, com trabalho, com tecnologia, com ele mesmo.
Este ano, o quadrinista mineiro resolveu apostar no sistema de micromecenato. Via Padrim, quem pagasse a partir de R$ 5 por mês recebia duas tiras por semana via e-mail.
Como a estratégia superou as metas de arrecadação, Salimena começou a produzir cinco tiras por semana para os apoiadores. E o valor mínimo ainda é o mesmo: R$ 5.
Não só é um modelo – de financiamento e de disciplina – a se seguir, mas é uma das tiras mais consistentes que se vê no quadrinho brasileiro. Dá vontade de compartilhar todas. E a melhor maneira de compartilhar todas é compartilhando todas.
MELHORES MIYAZAKI, COMÉDIA, ADAPTAÇÃO E FIM DO MUNDO
Um dia o Hayao Miyazaki encontrou a Tillie Walden, deu aquele sorriso de vovô japonês e pediu um abraço. Aí, miyazakicamente botou todos seus demônios na menina Tillie. O resultado é Are You Listening?,que ganhou o Prêmio Eisner de melhor graphic novel este ano. Saiu em 2019 pela First Second, torça que saia aqui.
A melhor comédia do ano é uma comédia noir. A Grande Farsa de Carlos Trillo e Domingo Mandrafina (editora Comix Zone, tradução de Jana Bianchi). É um noir que brinca com o noir, que vira teatro, que vira absurdo, mas não deixa de ser noir. E que também é uma comédia. Você já deve ter ouvido que Trillo era um dos grandes nomes no roteiro de HQ. É uma das poucas chances de comprovar.
É comum que as adaptações literárias para os quadrinhos se vejam no cabresto de ser fiel ao que estão adaptando. No caso da adaptação de Matadouro 5, por Ryan North e Albert Monteys, houve a confluência de dois autores que têm noção do quanto devem respeitar e do quanto podem desviar; e de donos do cabresto que, né, leram Kurt Vonnegut e têm a cabeça aberta de Kurt Vonnegut. Essa adaptação é um acontecimento, que devia ser ensinada como exemplo de como adaptar. Saiu em setembro pela Archaia e está em várias listas de melhores do ano.
Falando em adaptações, eu já cansei de todas do H.P. Lovecraft. Juscelino Neco também, por isso adaptou Lovecraft dando uma banana pra Lovecraft. Reanimator é a grande putaria findemundista do quadrinho nacional desse ano. Saiu pela Veneta em outubro.
Tom King ainda manda muito bem em Strange Adventures. Randall Munroe ainda emociona na XKCD. E ainda tem autor brasileiro bom a se desencavar por aí, como o Luckas Ionathan e seu Monstro Debaixo da Minha Cama.
MELHOR DO ANO QUE ENTRA PARA MELHORES DA VIDA
L’Enfance d’Alan, que estava na prateleira há vários anos e que eu resolvi tirar para ler em janeiro. Demorei demais.
Não há nada de incomum na infância de Alan Cope, o californiano de quem o francês Emmanuel Guibert – Grand Prix de Angoulême este ano – conta a história. Mas o jeito como Guibert conta, como ele encaixa a voz de Cope nos fragmentos de memória que ele transforma em imagem, é o que faz a diferença.
É um quadrinho de 2012, e escrevi mais sobre ele aqui. Outro trabalho de Guibert, sobre a vida adulta de Alan Cope, saiu no Brasil pela Zarabatana como A Guerra de Alan em 2010.
MELHORES DO ANO NO MEU OUTRO EMPREGO
Traduzo quadrinhos, e digo que traduzir é uma forma privilegiada de ler. Às vezes desprivilegiada: se o gibi é ruim, você enxerga todos os problemas com lupa. Mas, quando o gibi é bom, eu tenho a desculpa de ficar horas analisando o que ele tem de bom com a lupa: a desculpa é que estou trabalhando.
Assim, trabalhando e com lupa, achei A Solidão de um Quadrinho sem Fim a grande HQ de 2020. Fiquei feliz quando outros também acharam – não foi só minha lupa. Saiu pela Nemo em novembro.
As histórias de Alan Moore e Kevin O’Neill em Cinema Purgatorio são pequenas obra primas, feita com precisão de metrônomo. Mas exigiram horas de pesquisa e muita lupa do tradutor aqui – algo bem diferente do que um leitor normal costuma dedicar. Os últimos volumes, do 4 ao 6, saíram este ano pela Panini.
Li Jack Kirby: a épica biografia do rei dos quadrinhos, de Tom Scioli, antes de saber que ia traduzir. Tem uma potência que eu não esperava, principalmente nas cenas da Segunda Guerra Mundial. Traduzindo depois, com lupa, só ficou mais potente.
Também li Basketful of Heads, de Joe Hill e Leomacs, no início de 2020, sem saber que ia traduzir nos últimos meses do ano. É um filmezão de suspense sobrenatural, com diálogos afiados do Hill e fotografia esmerada do italiano Leomacs. Sai em janeiro pela Panini com o título Cesto de Cabeças.
Fico contente de ver Sabrina, de Nick Drnaso, que traduzi em janeiro, aparecer em listas de melhores do ano. Saiu pela Veneta em junho. Em novembro, traduzi mais uma graphic novel comprida que espero que entre nas melhores do ano que vem. Mas só posso falar dela no ano que vem.
MELHORES QUE EU QUERIA TER LIDO ESTE ANO
Ainda não li Jeremias: Alma, de Rafael Calça e Jefferson Costa. Ainda não li Kent State, do Derf Backderf. Ainda não li Regreso al Éden, do Paco Roca. Ainda não li Paul at Home, do Michel Rabagliatti. Ainda não li Flake, do Matthew Dooley. Ainda não li Quatorze Juillet, o novo do Bastien Vivès. Ainda não li Ogiva, de Bruno Zago e Guilherme Petreca. Alguns por motivo de acesso (bancas fechadas, estoques esgotados, fretes demorados), alguns por motivos de dólar alto. Torço pra ler no início de 2021. Assunto para outras colunas, espero.
MELHORES DE 2021
Rusty Brown vai encerrar o jejum de Chris Ware no Brasil. “Lint”, que é um quarto do álbum, é uma obra-prima das HQs (já escrevi sobre ela no Omelete, em 2011). Sai pela Quadrinhos na Cia., ainda sem data, com tradução de Caetano Galindo.
A Casa, de Paco Roca, também não tem previsão, mas é para ler assim que sair. A edição será da Devir, com tradução de Jana Bianchi.
Oleg, de Frederik Peeters, acaba de ser anunciada pela Nemo (via Fora do Plástico) e vai sair quase em sincronia com a edição europeia. É a retomada da autobiografia de Peeters, vinte anos depois de Pílulas Azuis (um dos meus preferidos da vida).
Ainda tem The Secret to Superhuman Strength, da Alison Bechdel, Carniça e a Blindagem Mística, do Shiko, e, se tudo der certo, Minha Coisa Favorita é Monstro 2, da Emil Ferris.
MELHOR SAIDEIRA DO ANO
The Adoption, ou L’Adoption, é um quadrinho francês de 2016 que saiu em inglês totalmente na surdina em novembro, pela minúscula Magnetic Press (tradução de Jeremy Melloul). Me chamou atenção pelo preço (R$ 15!) e pelo roteiro de Zidrou, de Verões Felizes.
A trama: um aposentado francês que não se convence em ser avô de uma menina adotada, recém chegada do Peru.
São vinte, trinta minutos de leitura em que você entra, afunda no quadrinho, duvida com ele, sofre com ele, baba na arte do Arno Monin. Quando acaba, é como se você tivesse morrido. É a melhor saideira deste ano.
(Tem uma continuação, que não é tão boa. Vale só se você quiser continuar babando na arte do Monin.)
UMA PÁGINA PRO ANO ACABAR
De Monin, em The Adoption. Porque tinha que ser.
UMA CAPA PRO ANO ACABAR
De Joshua Middleton, em Wonder Woman n. 765. Saiu no final do ano nos EUA.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo
#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries
#20 - Seleções do Artists’ Valley
#19 - Mafalda e o feminismo
#18 - O Jabuti de HQ conta a história dos quadrinhos
#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo
#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?
#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil
#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee
#13 - Cuidado com o Omnibus
#12 - Crise criativa ou crise no bolo?
#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix
#10 - Mais um fim para o comic book
#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca
#8 - Como os franceses leem gibi
#7 - Violência policial nas HQs
#6 - Kirby, McFarlane e as biografias que tem pra hoje
#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês
#4 - Cheiro de gibi velho e a falsa morte da DC Comics
#3 - Saquinho e álcool gel: como manter as HQs em dia nos tempos do corona
#2 - Café com gostinho brasileiro e a história dos gibis que dá gosto de ler
#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020
#0 - Warren Ellis cancelado, X-Men descomplicado e a versão definitiva de Stan Lee