Seriam os Fauves do Festival d’Angoulême os prêmios mais importanes do quadrinho mundial? É discutível, mas tem vários pontos a favor do “sim”.
O Festival se encaminha para os 50 anos. Suas premiações passaram a ser chamadas de Fauves em 2008, depois que Lewis Trondheim desenhou um gatinho de símbolo do Festival. O troféu virou o gatinho. O prêmio maior escolhido pelo júri vai para o álbum do ano e chama-se Fauve d’Or, ou “Gatinho de Ouro”.
Por que os Fauves seriam os mais importantes do mundo? É que a França e a Bélgica adoram quadrinhos. Adoram mesmo. Todas as faixas etárias leem HQ, os personagens estrelam campanhas publicitárias e são estátuas em pontos turísticos, o mercado editorial e o Ministério da Cultura baixam a cabeça para o poder do gibi.
Como comparou uma vez Ricardo Manhães – brasileiro que morou por lá e trabalhou no mercado de lá – o quadrinho é tão popular na França quanto a música brasileira é popular no Brasil. Imagine que lá seus olhos são tão assaltados por gibi quanto, aqui, seus ouvidos são assaltados por sertanejo.
Franco-belgas gostam dos produtos nacionais e os campeões de vendas são feitos por franceses e belgas para franceses e belgas. Mas eles têm olhos abertos para o mundo: leem muito, mas muito, mangá; estão cada vez mais abertos para o quadrinho norte-americano, inclusive de super-herói; adotam autores do resto da Europa, como italianos, alemães, suíços e ingleses que publicam em francês antes de publicar no próprio país; e até já premiaram brasileiros.
Este é outro ponto a favor do Fauve d’Or e dos prêmios do Festival d’Angoulême em geral: é um prêmio aberto para quadrinhos do mundo todo. Sim, a HQ precisa ter sido publicada em francês – mas não existe categoria “melhor obra de autor estrangeiro” ou “melhor edição franco-belga de material estrangeiro”. Mangás competem com graphic novels que competem com bandes dessinées que competem com fumetti de igual para igual.
Nos últimos vinte anos, o Fauve d’Or foi para quatro obras dos EUA, duas da Itália, uma do Japão e uma da Austrália. Sem falar em Persépolis e em Crônicas de Jerusalém, respectivamente de uma iraniana e de um canadense que se fixaram na França.
Destes vinte premiados, onze foram publicados no Brasil. Dois ou três não têm edição em inglês – são exceções. A maioria se difunde também em alemão, italiano, espanhol. Além de tudo, o Fauve d’Or influencia e é influenciado pelo que as editoras publicam em outros países.
O prêmio máximo de um país que lê muito gibi e que lê gibi do mundo inteiro e que influencia o que o resto do mundo lê? Tem cara de maior prêmio do mundo.
Os Fauves de Angoulême 2021 foram anunciados na semana passada. O Fauve d’Or foi para The Hunting Accident, dos norte-americanos Landis Blair e David L. Carson. Lançada em 2017 nos EUA, a graphic novel só agradou os poucos críticos que leram, mas no geral passou batida. Agora vai ser reconsiderada.
(E já tem editora no Brasil, embora não tenha anúncio...)
Os outros Fauves são escolhidos a partir de uma lista comprida, que você vê aqui. Tem pelo menos mais um que vai ser publicado no Brasil, Pele de Homem, de Hubert e Zanzim (veja mais abaixo), que levou o “Fauve des lycéens” – o prêmio das escolas, com apoio do ministério da educação francês.
O inglês Steven Appleby ganhou um Fauve Especial do Júri por Dragman. A francesa Gabrielle Piquet levou um Fauve de L’Audace (vanguarda) por La Mécanique du Sage. O canadense Michel Rabagliati ficou com o Fauve de Série por Paul à La Maison (veja abaixo também).
O Festival d’Angoulême teve uma edição atípica em função da pandemia. E ainda não acabou. Promovido normalmente no fim de janeiro, na semana passada ele só teve programação online e a divulgação dos Fauves. O resto ficou para junho, quando se espera liberação para um evento físico, com exposições e gente circulando. Também ficou para junho a nomeação do novo Grand Prix.
Tem gente que não quer Festival, e não é por causa da Covid. Jean-Benoît Meybeck, quadrinista e integrante do coletivo Auters-Autrices en Action (autores e autoras em ação), disse à franceinfo que eles querem boicotar o Festival para chamar atenção para o bolso vazio do quadrinista franco-belga. Muitos autores têm renda abaixo da linha da pobreza.
A reclamação já tem alguns anos: o mercado de lá tem publicado muitos títulos (os estrangeiros, inclusive), o que pulveriza as vendas e não possibilita que a grande maioria dos álbuns atinja patamar de vendas que sustente o autor ou autora.
A reclamação aumentou depois que se divulgaram os números do mercado em 2020. No ano de se distrair da pandemia, os franceses compraram 53 milhões de álbuns em quadrinhos (ver gráfico acima), movimentando 591 milhões de euros – um recorde histórico segundo o ActuaBD. O que mais vendeu? Mangá, liderados por Naruto.
Os autores franceses querem uma repartição melhor desse bolo. “Adoramos o Festival d’Angoulême e não queríamos boicotá-lo. Mas é o único meio que temos para agir”, disse Meybeck, o representante do movimento.
PELE DE HOMEM
Peau d’Homme, de Hubert e Zanzim, acabou de ganhar um Fauve do Festival d’Angoulême. Não foi o primeiro reconhecimento: em dezembro, o álbum ganhou quatro prêmios em 24 horas, segundo o LivresHebdo. E prêmios importantes, como o da associação de jornalistas e críticos de HQ. Falei disso aqui na coluna, em dezembro.
O Fora do Plástico anunciou que Pele de Homem já tem publicação confirmada no Brasil, pela Nemo. A história da moça renascentista que pode usar pele de homem para viver vidas masculinas está prevista para cá em junho, com tradução de Renata Silveira.
“Méritos totais para o Arnaud, que é super antenado com os quadrinhos europeus e principalmente franceses”, me contou Eduardo Soares, editor da Nemo junto ao chefe Arnaud Vin. “Ele se encantou com essa antes mesmo do primeiro prêmio.” O contrato para publicação está fechado desde novembro.
PAUL EM CASA
Já li dois quadrinhos este ano que eu tenho certeza de que vou levar para meus melhores de 2021. Melhores da vida, quem sabe. Um deles é Oleg, de Frederik Peeters, do qual eu falo outra hora. O outro é Paul at Home, de Michel Rabagliati.
Que, por coincidência, eu li poucos dias antes de ele virar um dos Fauves de Angoulême. E saí recomendando a quem pudesse ouvir. Angoulême também recomenda, viu?
Outra coincidência, e das grandes: Paul at Home, como o próprio nome diz, é uma história sobre ficar em casa que saiu no ano de ficar em casa. Foi lançada em francês no inicinho de 2020 pela editora canadense La Pastèque. Eu li a edição em inglês, da Drawn & Quarterly, com tradução de Helge Dascher e Rob Aspinall.
Por que Paul fica em casa? Nada a ver com pandemia. A história se passa em 2012. Paul acabou de se divorciar e está às voltas com novos rumos na vida, cuidar da mãe idosa e com esse mundo que avança e deixa ele para trás. Além disso, sua casa está precisando não de uma, mas de várias reformas.
Rabagliati diz – nesta entrevista, por exemplo – que Paul é 80% ele mesmo. At Home é seu décimo álbum 80% autobiográfico, nos quais ele se mostra desde a infância até a meia idade. Todos dizem Paul no título: Paul in the Country, Paul Moves Out, Paul Goes Fishing. O autor completa 60 no fim deste mês.
No Brasil saiu apenas um destes Paul,mas sem “Paul” no título: A Canção de Roland (Comix Zone, tradução de Thiago Ferreira). Resenhei aqui. Se não leu, leia assim que possível. Angoulême também recomenda, pois lhe deu o Fauve de preferido do público em 2010.
Não li todos os Paul, mas gostei de todos os que li. Antes desse tinha lido Paul Joins the Scouts, sobre a experiência dele como escoteiro – e que tem um dos finais mais sombrios que eu já vi.
Paul at Home atira para vários lados em torno dessa ideia-núcleo da casa. É mais desconexo que os outros álbuns. Talvez seja por isso que eu gostei tanto: Rabagliati mostra de um jeito simpático que eu, você e todos nós vivemos numa bagunça só. Mas vivemos.
OLD
Falei de Frederik Peeters ali em cima. Encontrei por acaso, no meio de uma resenha, que Castelo de Areia, de Pierre Oscar Levy e Peeters, ia ser adaptado para o cinema. E outra surpresa: adaptado por M. Night Shyamalan, o diretor que não acerta todas, mas quando acerta faz umas cenas que duram décadas na minha cabeça (vocês estão assistindo Servant?).
Mais uma surpresa: Castelo de Areia, veja só, é Old, o próximo filme de Shyamalan. Que já está pronto, estreia em 23 de julho nos EUA e anda ganhando teasers no twitter do diretor - o de hoje tem um castelo de areia...
Mas ninguém fala que Old é uma adaptação de Castelo de Areia!
Bom, não exatamente ninguém. O Collider deu a notícia em setembro, dando a entender que Shyamalan queria esconder que o novo filme era uma adaptação. Provavelmente para não spoilear ninguém. Se a trama for idêntica à da HQ, vale a pena ser pego de surpresa.
A divulgação oficial do filme (e até as notinhas aqui do Omelete) deixam essa informação sobre o original de fora. O IMDB só dá crédito de roteiro a Shyamalan e diz que a trama é sigilosa.
O trailer deve sair no domingo, então alguma coisa deve se revelar.
Castelo de Areia saiu no Brasil em 2011, pelo selo Tordesilhas, com tradução de Diogo Rodrigues de Barros. Resenhei para o Omelete na época. No momento está esgotado, mas confirmei com a editora que haverá uma reedição em junho, bem a tempo do filme.
Não vou falar da trama para quem não leu, mas recomendo muito o quadrinho. Leia antes ou depois do filme, mas leia.
VIRANDO PÁGINAS
Tex Ano 1, Número 1 foi lançada no Brasil pela Editora Vecchi em fevereiro de 1971. O personagem tem mais idade: foi criado em 1948 pelos italianos Gianluigi Bonelli e Galep, e chegou no Brasil pouco depois na revista Junior. Mas o primeiro título com o nome do caubói caiu nas bancas do Brasil há exatos 50 anos. E nunca mais saiu.
Seguindo a numeração das editoras Vecchi, RGE e Globo, a série chega no número 616 pela editora Mythos este mês. A Mythos também anunciou o Tex Especial 50 Anos para fevereiro, com uma história clássica de Gian Luigi Bonelli e Giovanni Ticci e outra de Claudio Nizzi com Joe Kubert.
O que se comenta no mercado é que os leitores de Tex são cativos e que todos têm mais de 50.
Provavelmente ele não seja fã de Tex, mas Bruce Timm completa 60 anos hoje. Timm foi uma das cabeças de Batman: A Série Animada, a série iniciada em 1992, marcante, premiada e que influenciou até os quadrinhos – ele e Paul Dini, por exemplo, criaram a Arlequina na animação, e depois eles mesmos a importaram para as HQs. Ele segue envolvido nas animações da DC.
E na próxima quarta-feira, dia 10, comemoram-se 30 anos do lançamento de New Mutants n. 98, a estreia de Deadpool. Ou lamenta-se, caso você não queira comemorar. Rob Liefeld e Fabian Nicieza criaram o mercenário tagarela que quase dominou o Universo Marvel – e que rendeu um bilhão e meio no cinema.
UMA CAPA
De Sean Phillips em Hellblazer: Rise and Fall n. 3, que saiu esta semana. Phillips foi um dos desenhistas icônicos de John Constantine e fazia tempo que não dava as caras para dar a cara do malandro de capote. Voltou com uma capa icônica.
UMA PÁGINA
De Tom Gauld em Guarda Lunar, que sai na semana que vem pela Todavia (tradução de Hermano Freitas). O mesmo autor de Golias trata do cotidiano do único policial na lua, o lugar onde não acontece crime algum. Aliás, onde nada acontece. Contra as expectativas, isso é o que há de fascinante na história do guardinha.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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