Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
CAFÉ COM QUADRINHOS
Cafeína que faz ver fantasma. Uma fazenda no Brasil. E figurino fake de novela de época.
Crema, que estreou no Comixology na semana passada, reúne tudo isso. Além da trama em torno do Brasil, tem um brasileiro na criação: o desenhista Dante Luiz, que mora em Porto Alegre.
Foi importante ter alguém do país envolvido na graphic novel, com roteiro do canadense Johnnie Christmas – mais conhecido como desenhista (Sheltered, Angel Catbird).
A trama começa em Nova York com Esme, barista que enxerga fantasmas quando toma café demais. Duas coisas levam Esme ao Brasil: o rolo com a herdeira de uma fazenda cafeeira na cidade fictícia de Bela Alvorada e o fantasma que quer que ela leve uma carta à fazenda.
"Enquanto o Johnnie escrevia o roteiro, a gente ia conversando sobre alguns aspectos culturais de que ele não tinha certeza, ou elementos que só alguém daqui conseguiria entender: cheiros, ambientações, relações familiares, e coisas do tipo", Luiz conta em conversa por e-mail.
"Outra coisa que conversamos foi o aspecto mais histórico: como esse lado de arquitetura colonial, de interior, não costuma chegar em outros países, especialmente em um enredo mais fantasmagórico, achamos que seria uma mistura única."
O desenhista diz que entende tanto da cultura cafeeira quanto estudou para o vestibular, mas que esse não era o aspecto mais importante do enredo. Para a HQ, ele e esposa estudaram cenários e figurinos. Há inclusive um extra no final da HQ com fotos e anotações de pesquisa.
"Quando definimos o tema histórias de romance paranormal, especialmente esse que envolve mais de uma geração, minha cabeça automaticamente voltou para estética de novela de época, especialmente as mais antigas. Existe um certo anacronismo nessas novelas antes dos anos 2000, especialmente pelos figurinos, que raramente têm uma fidelidade histórica 100%. Eu acho esse visual muito interessante, esteticamente falando, e quis reproduzir o que sentia quando criança ao ver esses programas."
Por enquanto não há edição de Crema em português, mas Luiz diz que vários leitores demonstraram interesse e que ele (e Johnnie) gostariam. Por enquanto, para quem lê inglês, a HQ está disponível aqui.
SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA...
Levei uns meses para dar conta de O Império dos gibis: a incrível história dos quadrinhos da editora Abril, de Manoel de Souza e Maurício Muniz (editora Heroica). São 400 e tantas páginas – sem contar o caderno de fotos, carregado de relíquias – que contam como a Abril foi fundada pelos quadrinhos, liderou os gibis Disney no Brasil, produziu muito quadrinho nacional e foi o canal de Marvel e DC na minha infância e adolescência.
Por esse lado, foi até bom passar meses de volta, como dizemos nós, idosos, na minha época.
Do ponto de vista de contribuição, não há pesquisa tão aprofundada sobre os quadrinhos no Brasil desde A Guerra dos Gibis, de Gonçalo Junior. Cada ponto do avanço histórico desde a fundação da Abril em 1950, da formação das redações, das decisões de publicação, das negociações com editoras internacionais é explicado com as devidas fontes.
Mas o que o livro tem de mais valioso são os entrevistados e entrevistadas.
Para reconstituir setenta anos, os autores tiveram longas conversas com editores, desenhistas e outros colaboradores da Abril. A maioria encarava o emprego como sonho realizado de trabalhar com quadrinhos.
Há trechos da história de vida de Primaggio Mantovi, Jotapê Martins, Marcelo Alencar, Mario Luiz Barroso, Júlio de Andrade, Lilian Mitsunaga, Paulo Maffia e outros. É o que deixa o livro envolvente e real. Nas aspas deles, o leitor entra na redação.
(Se você leu Marvel Comics: a história secreta, de Sean Howe, a sensação é a mesma.)
Há uma rápida menção ao Omelete. Segundo o livro, este texto de 2003, de Roberto Elísio dos Santos, foi o que motivou a Abril a creditar os autores nos gibis da Disney – o que raramente se fez de 1950 até então.
O único porém da edição é que, pensando o livro como referência de pesquisa, falta índice remissivo. Quando e se houver edição digital, onde se pode fazer busca por nomes e datas, o problema fica parcialmente remediado.
O clímax do livro, para mim, vem a umas cem páginas do final. Em 1998, X-Men e Homem-Aranha, que vendiam na faixa dos 80 mil exemplares por mês, caem para a casa dos 20 mil. Por quê? O editor Sergio Figueiredo consulta um superior na Abril, que encomenda uma pesquisa e dá o veredito: “O seu mercado não é mais de massa. Agora é de nicho.”
Os últimos vinte anos de quadrinhos no Brasil, em que vendagem de 20 mil é sonho que raramente se alcança, foram definidos por essa frase.
SETENTÃO SEM FILTRO
Provavelmente a entrevista do ano. Howard Chaykin conversando com Michael Tisserand, jornalista dos bons na área de HQ. Chaykin, que completa 70 em outubro, monta nos super-heróis:
Lá em 1973 ou 74, quando eu fiz Scorpion, a última fala da primeira edição foi a seguinte (parafraseando): “Altruísmo é coisa pro Albert Schweitzer. Pra mim, pagam.” Eu sigo nessa. Acho absurda a motivação dos heróis de gibi. O Batman é um rico que teve um dia de merda aos oito anos. O Superman é um ser divino que chega na Terra e deixa a natureza divina de lado pra atender uma clientela que não é nem digna do seu desprezo. Esses personagens amparam, são condescendentes com uma crença fantasiosa que não tem nada a ver com nada, que sequer cheira a realidade. E quanto mais realista ficam, à força de tacarem uma seriedade em cima, mais a coisa fica besta. Mitologia moderna? Vai chupar um pau.
Tem mais trechos impagáveis de Chaykin, como ele contando que foi bom não ter ganhado royalties de Star Wars – “eu ia gastar tudo em wine women and song, ou seja, droga e tudo mais que ia me matar; não era pra eu ter chegado nessa idade” – e que quase trocou socos com Will Eisner em São Paulo.
GAIMAN
Chaykin faz 70 em outubro, Neil Gaiman faz 60 em novembro. “Não vou estar nesse planeta por muito tempo. Tenho quase 60 anos. E a única coisa que eu sei sobre o tempo é que ele se move num piscar de olhos. E tem tanta história que eu ainda não contei, em tantas mídias. Vai ser muito triste se eu morrer. São bons mesmo, esses livros que eu não escrevi.”
Da ótima entrevista a Walter Porto, na Folha de S. Paulo, esta semana.
BURBURINHO
O burburinho da semana é Hedra, graphic noveleta do norte-americano Jesse Lonergan que acabou de sair pela Image. É um quadrinho mudo de 50 e poucas páginas, sobre uma astronauta buscando vida fora da Terra depois da hecatombe.
Desafia a ideia básica de que gibi é leitura da esquerda para a direita (ou o contrário, tanto faz) e de cima para baixo. E é a aplicação com narrativa mais clara daquelas ideias do Desaplanar, de pensar a página como um todo.
UMA PÁGINA
Da Emil Ferris, no Facebook. Ela desenhou Eric Reynolds, seu editor na Fantagraphics, a quem agradece por ter arrancado a bala de prata que tinha no seu coração e a convencido a publicar material de gaveta. O que ela tinha na gaveta virou o especialzinho Our Favorite Thing Is My Favorite Thing Is Monsters,vencedor do Eisner de Melhor Edição na semana passada e que dá pra ler de graça aqui.
UMA CAPA
De Amaury Filho, para História dos Quadrinhos - EUA, de Diego Moreau e Laluña Machado (editora Skript). Com previsão para lançamento em dezembro, o livro conta toda a história dos quadrinhos no maior mercado de HQ do mundo, de Yellow Kid até hoje. Já financiado no Catarse, o livro voltou à plataforma hoje se você quiser garantir o exemplar.
(o)
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.