Você já deve ter lido que a Marvel Comics passará a distribuir suas revistas pela Penguin Random House nos EUA. O anúncio foi feito nesta quinta-feira e as lojas de quadrinhos começam a receber gibis da Marvel via PRH em outubro.
Você também já deve ter lido que essa é uma das notícias do ano, que vira o mercado de cabeça pra baixo, que pode ter consequências para todas as editoras de quadrinhos nos EUA e mexer na própria Marvel.
Mas por quê? Que diferença faz de quem é o caminhão que leva o gibi até a loja?
A resposta tem a ver com grana, com história e com as tradições do mercado de lá. E é mesmo uma notícia impactante. Ela pode mexer no formato dos gibis, no jeito de se contar história em gibi e no ganha-pão de muito quadrinista. Não só na Marvel, na indústria inteira.
Para começar, você precisa entender um pouquinho do mercado direto, o sistema de distribuição das revistas em quadrinhos nos EUA. Já tratei dele com mais detalhes neste texto, mas vou resumir.
Revistas mensais, minisséries e tudo que tem lombada canoa e grampos são o que os norte-americanos chamam de formato comic book. Nos EUA, você não encontra comic books à venda em bancas. Lá, você só compra comic books em lojas de quadrinhos, as comic shops.
Os lançamentos desta semana, como Action Comics n. 1029 (DC), Amazing Spider-Man n. 62 (Marvel), Bitter Root n. 11 (Image), Red Sonja n. 25 (Dynamite) e mais umas vinte revistas dessas e outras editoras: se você quiser um desses comic books impressos, vai ter que ir a uma loja de quadrinhos.
É a exclusividade do mercado direto. As lojas de gibi podem vender o que mais quiserem: coletâneas, coleções de luxo, bonecos, estátuas. Mas isso você também encontra em outros pontos de venda. O que é exclusivo das comic shops é o formato revista, o comic book.
Até o início do ano passado, toda loja de quadrinhos dos EUA fazia seus pedidos de comic books, de todas as editoras, à distribuidora Diamond Comics. Era um monopólio de distribuição com mais de vinte anos.
Em junho de 2020, a DC Comics rompeu com a Diamond e buscou a distribuidora Lunar. Uns trinta porcento do faturamento da Diamond morreram ali.
Ontem, a Marvel rompeu com a Diamond. A distribuidora perdeu mais de metade do seu faturamento.
A Diamond continua distribuindo comic books de outras editoras. Pelas notícias de ontem, também pode continuar distribuindo da Marvel – mas passando pela Penguin Random House como intermediária, o que encarece os custos de distribuição de cada gibi.
A Penguin anunciou que não cobrará frete das lojas, o que a Diamond cobrava. Ou seja: se a loja continuar pedindo gibis Marvel à Diamond, vai pagar mais caro do que se pedir à Penguin. Não vale a pena.
Mas a grande sinuca aí é com as outras editoras. Como a Diamond perdeu quase 80% do seu faturamento em um ano, talvez ela deixe de ter um negócio viável. Se ela fecha, Image Comics, Dynamite Entertainment, Dark Horse e um monte de editoras menores vão ter que ou correr às mesmas distribuidoras da Marvel e da DC ou desistir de fazer comic books.
Distribuir comic books é um saco. Em comparação com o mercado de livros, as tiragens são pequenas. A loja vai pedir 10 exemplares de um gibi, 40 de outro, 5 daquele lá e você tem que montar caixas com essa seleta. É um mercado de colecionadores chatos. O gibi é um pedacinho de papel, tinta e grampo bem frágil, mas não pode chegar com um cantinho amassado. A margem de lucro é pequena porque os gibis têm trinta, quarenta páginas e não podem sair muito caros pro consumidor final. Tem questões de tradição, que o leitor cobra e as editoras atendem.
Mesmo que fosse um monopólio e levasse algumas críticas, achava-se que só a Diamond ainda aguentava esse perrengue todo, e que só ela ia fazer isso até morrer o último colecionador de gibi nos EUA.
Aí surgiram outros interesses…
A Penguin Random House é o maior grupo editorial dos EUA, movimenta US$ 3,3 bilhões por ano e quis assumir esses perrengues com a Marvel. Vender gibis vai somar bem pouco àqueles bilhões. Aliás, a Penguin vai montar uma nova divisão só para lidar com Marvel e mercado direto, pois nunca trabalhou com comic books. Por que investir numa coisa que rende tão pouco?
O que se especula é que a Penguin Random House quer ficar também com tudo que não é comic book da Marvel: as coletâneas, as capas duras, as edições de luxo, as graphic novels. Os gibis com lombada. Diferente dos comic books, esse material é vendido em livrarias, supermercado, todas as megalojas online e circula pelo mundo inteiro.
Nos EUA, o gibi-livro já é um mercado maior que o dos comic books. E quem distribui as lombadas quadradas da Marvel por enquanto é a primeira concorrente da Penguin, a Hachette.
Mais: a Penguin Random House já distribui os quadrinhos de livraria da DC Comics e da Dark Horse. Quando a Penguin Random House concluir a compra de outra concorrente, a Simon & Schuster, também vai distribuir gibis de lombada quadrada de AWA Studios, Boom! Studios, Oni Press, Heavy Metal e uma lista de editoras menores do quadrinho norte-americano.
É uma consolidação de mercado.
Aí começa a especulação mais séria: depois da consolidação do mercado de quadrinhos pra livraria, a Penguin Random House vai continuar interessada no mercado dos comic books? O mercado trabalhoso, chato e que rende menos? Provavelmente não.
Aí o próprio formato do comic book está ameaçado. Por que lançar revista mensal do Homem-Aranha? Melhor fazer coletâneas dos 60 anos de história do Aranha, ou lançar novas histórias direto em graphic novel. Elas vendem mais, melhor e em mais pontos de venda. E isso vale para Deadpool, Thor, Capitã Marvel e, depois, Batman, Mulher-Maravilha, Arlequina e, depois, Saga, Lazarus, Monstress…
Tudo direto em livro. Histórias seriadas em capítulos de vinte e poucas páginas podem virar coisa do passado. Pra que cinco revistas do Batman por mês? Melhor fazer uma Bat-graphic novel por semestre e deixar as melhores Bat-histórias perenes vendendo em todas as versões, da econômica à mega-luxo.
Se a indústria for por este caminho, a produção de páginas cai drasticamente. Ponha na conta a quantidade de quadrinistas que não vai ter trabalho. E a falta de diversidade e invenção nas editoras. E a quantidade de comic shops que vai fechar porque não tem mais nada de exclusivo para vender.
É um movimento que muita gente previa. O comic book tradicional, criado nos anos 1930, era um formato pras bancas, em consignação, para vender altas tiragens em papel fuleiro. A sobrevida do formato se deve a essa invenção do direct market no final do século passado e da resistência da Diamond, junto às editoras, atendendo a fãs tradicionalistas.
Os tradicionalistas até tinham suas vantagens para os donos de editoras: eles são “o epicentro da cultura pop”, como diz um comunicado de ontem da Penguin Random House. É deles que vêm a força que desemboca nas bilheterias bilionárias, licenciamentos, conteúdo pra streaming etc. Mas está ficando caro manter essa tradição com as comic shops. E sabe-se lá até quando eles vão ser “epicentro da cultura pop”.
Além disso, tradicionalistas envelhecem e morrem, crises econômicas vão e vêm, pandemias fecham lojas, papel fica mais caro… essa morte do comic book está anunciada há tempos. A notícia de ontem pode ter sido outro prego no caixão do formato.
Em 1995, a Marvel comprou uma distribuidora própria e passou a distribuir exclusivamente com ela. A medida deu errado pra própria Marvel e ainda quebrou um monte de distribuidoras que atendiam o mercado direto, consolidando o monopólio da Diamond. Até hoje, 26 anos depois, se fala de como a decisão da Marvel abalou o mercado.
Até o final desta década, quem sabe antes, vai ter gente dizendo que o acordo de ontem entre Marvel e Penguin Random House mudou o mercado mais uma vez.
CAVALEIRO DAS TREVAS, 35 ANOS
Falando em Bat-histórias perenes, Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley, completou 35 anos no último domingo, dia 20. Paul Levitz, que era executivo da DC Comics na época, escreveu para o site 13th Dimension sobre o momento em que o editorial da DC descobriu que Cavaleiro n. 1 tinha esgotado.
É uma leitura curta, mas cheia de detalhes que hoje são comédia. De como a editora apostou numa tiragem “arriscada” de 125 mil exemplares (e tiveram que quase quadruplicar esse número, sem contar coletâneas) e do medo de lançar uma HQ de luxo a US$ 2,95 quando os gibis de linha custavam 75 cents.
(A propósito – e complementando o texto mais acima – os gibis de linha da DC vão pular para US$ 5,99 em junho.)
O roteirista Fred Van Lente (Deadpool, Hércules) também escreveu sobre Cavaleiro das Trevas no 13th Dimension e encontrou vários pontos negativos:
"Quando você cresce, você percebe que o mundo é lotado de Batmans, pelo menos de Batmans na versão Cavaleiro: brutamontes furiosos que saem quebrando tudo e tirando tempo de todos, mas sempre se acham a vítima."
Feliz aniversário, Cavaleiro das Trevas? (E volte na matéria que escrevi sobre a série quando ela fez 30 anos.)
AS CARTAS DE STEVE DITKO
Outra ótima leitura da semana. Este artigo no Comics Journal sobre as cartas de Steve Ditko. Que começa assim:
Quando Steve Ditko faleceu, em 2018, a família teve dificuldade para abrir a porta do seu estúdio, pois ela estava barrada por pilhas de correspondência fechada.
Cartas eram o meio de comunicação preferido do recluso Ditko. Aparentemente, ele respondia a todo mundo por quem se interessasse, para falar de quadrinhos e da vida. O jornalista brasileiro Marcus Santana, por exemplo, conta que trocou diversas cartas com o norte-americano no fim da vida.
O texto de Robert Elder compara a produção do escritor Ernest Hemingway – que se estima que escreveu 6 mil cartas em vida – com a de Ditko. E diz que o quadrinista supera em muito o número de cartas de Hemingway.
Para quem ainda não leu, Rorschach, a minissérie de Tom King e Jorge Fornés que está rolando nos EUA, é uma homenagem a Ditko e, particularmente na última edição que saiu, a sua mania epistolar. Rorschach, de Watchmen, é baseado em uma criação de Ditko: o Questão.
FILHO DA CAMISINHA FURADA
A editora Conrad anunciou um clássico: Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse. Ícone da temática homossexual nos quadrinhos, a graphic novel com arte detalhadíssima trata de preconceito no sul dos EUA nos anos 1960.
O álbum já teve várias edições nos EUA. No ano passado, por ocasião dos seus 25 anos, a edição comemorativa saiu com material inédito e introdução de Alison Bechdel.
Sai ainda no primeiro semestre, com tradução de Dandara Palankof.
DAVID LYNCH’S DOMU
David Lynch, de Twin Peaks, quase dirigiu uma adaptação para o cinema de Domu, de Katsuhiro Otomo. A produção chegou a ter roteiro e ia acontecer nos anos 1990. Quem conta é o diretor de arte que quase fechou a parceria entre o diretor norte-americano e o mangaká, Nilo Rodis-Jamero, no /Film.
Rodis-Jamero, associado a George Lucas, tratou com Otomo no Japão e apresentou a história a Lynch. Domu conta o conflito entre um velho e uma menina com vastos poderes mentais, que estão provocando o caos em um prédio residencial.
Segundo Rodis-Jamera, Lynch topou assim que ouviu como seria a primeira cena. Mas o projeto não foi para a frente devido a um problema com a produtora que ia pagar o projeto.
Até ali, milagrosamente, Otomo – exigente e difícil – já tinha concordado com a prévia do roteiro e com Lynch. O quadrinista japonês atualmente proíbe republicações de Domu no mundo inteiro.
YANG, ENGANADO
Gene Luen Yang (Chinês Americano, O Novo Superman) resolveu reagir com um quadrinho ao último massacre com motivação racista nos EUA – seis imigrantes asiáticas entre oito mortos numa casa de massagens de Atlanta, no último dia 16. Mas não é um quadrinho com muita esperança.
Você lê a HQ completa acima. O final é poderoso.
Uma vez que outra, acontece alguma coisa. Começa a passar um seriado com gente com a minha cara, e gente que não tem minha cara assiste. Ou alguém com a minha cara ganha um cargo importante e gente que não tem minha cara para e ouve.
Ou eu vejo meus filhos cantarem no colégio com tanta segurança, que por um instante eu me convenço que eles nunca deram bola para o formato dos olhos que eles têm.
E aí eu penso:
A discussão acabou.
Hora das minhas palavras, minhas ideias e minhas páginas de gibi tratarem de outro assunto.
(pausa)
Até agora, essa sensação sempre foi engano.
VIRANDO PÁGINAS
Glenn Fabry, o artista britânico conhecido pelas capas de Hellblazer e de Preacher, completou 60 anos na última quarta-feira, dia 24. (E o câncer de pulmão que ele anunciou em 2018 felizmente tinha sido um diagnóstico errado). Ele prepara um novo projeto para este ano, chamado Sekhmet.
Sandman n. 75, a conclusão da primeira e grandiosa série de Neil Gaiman e companhia, saiu em 27 de março de 1996, há 25 anos. A série já tinha durado mais do que Gaiman queria – e mesmo assim o universo que ele criou é explorado até hoje pela DC Comics. O seriado da Netflix baseado na HQ está previsto para este ano.
A primeira adaptação de quadrinhos de super-herói para o audiovisual completa 80 anos neste domingo, dia 28. A cinessérie As Aventuras do Capitão Marvel, da Republic Pictures, estreou nos cinemas neste dia em 1941.
No dia 1º de abril, House of Secrets n. 92 completa 50 anos – e, com ela, o Monstro do Pântano, criação de Len Wein e Bernie Wrightson.
UMA PÁGINA
De Marvel n. 5, numa história curtinha de Nick Fury com roteiro e desenho de Adam Hughes. Achei os três últimos quadros de uma perfeição sem igual.
UMA CAPA
De Greg Smallwood em Batman/Superman n. 16, lançamento desta semana.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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