Enquanto Isso | Por que a Marvel sacudiu o mercado ontem

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Enquanto Isso | Por que a Marvel sacudiu o mercado ontem

É o fim do comic book? E mais: Cavaleiro das Trevas de aniversário, as cartas de Steve Ditko, Lynch + Otomo, Gene Yang triste

26.03.2021, às 17H29.

Você já deve ter lido que a Marvel Comics passará a distribuir suas revistas pela Penguin Random House nos EUA. O anúncio foi feito nesta quinta-feira e as lojas de quadrinhos começam a receber gibis da Marvel via PRH em outubro.

Você também já deve ter lido que essa é uma das notícias do ano, que vira o mercado de cabeça pra baixo, que pode ter consequências para todas as editoras de quadrinhos nos EUA e mexer na própria Marvel.

Mas por quê? Que diferença faz de quem é o caminhão que leva o gibi até a loja?

A resposta tem a ver com grana, com história e com as tradições do mercado de lá. E é mesmo uma notícia impactante. Ela pode mexer no formato dos gibis, no jeito de se contar história em gibi e no ganha-pão de muito quadrinista. Não só na Marvel, na indústria inteira.

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Para começar, você precisa entender um pouquinho do mercado direto, o sistema de distribuição das revistas em quadrinhos nos EUA. Já tratei dele com mais detalhes neste texto, mas vou resumir.

Revistas mensais, minisséries e tudo que tem lombada canoa e grampos são o que os norte-americanos chamam de formato comic book. Nos EUA, você não encontra comic books à venda em bancas. Lá, você só compra comic books em lojas de quadrinhos, as comic shops.

Os lançamentos desta semana, como Action Comics n. 1029 (DC), Amazing Spider-Man n. 62 (Marvel), Bitter Root n. 11 (Image), Red Sonja n. 25 (Dynamite) e mais umas vinte revistas dessas e outras editoras: se você quiser um desses comic books impressos, vai ter que ir a uma loja de quadrinhos.

É a exclusividade do mercado direto. As lojas de gibi podem vender o que mais quiserem: coletâneas, coleções de luxo, bonecos, estátuas. Mas isso você também encontra em outros pontos de venda. O que é exclusivo das comic shops é o formato revista, o comic book.

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Até o início do ano passado, toda loja de quadrinhos dos EUA fazia seus pedidos de comic books, de todas as editoras, à distribuidora Diamond Comics. Era um monopólio de distribuição com mais de vinte anos.

Em junho de 2020, a DC Comics rompeu com a Diamond e buscou a distribuidora Lunar. Uns trinta porcento do faturamento da Diamond morreram ali.

Ontem, a Marvel rompeu com a Diamond. A distribuidora perdeu mais de metade do seu faturamento.

A Diamond continua distribuindo comic books de outras editoras. Pelas notícias de ontem, também pode continuar distribuindo da Marvel – mas passando pela Penguin Random House como intermediária, o que encarece os custos de distribuição de cada gibi.

A Penguin anunciou que não cobrará frete das lojas, o que a Diamond cobrava. Ou seja: se a loja continuar pedindo gibis Marvel à Diamond, vai pagar mais caro do que se pedir à Penguin. Não vale a pena.

Mas a grande sinuca aí é com as outras editoras. Como a Diamond perdeu quase 80% do seu faturamento em um ano, talvez ela deixe de ter um negócio viável. Se ela fecha, Image Comics, Dynamite Entertainment, Dark Horse e um monte de editoras menores vão ter que ou correr às mesmas distribuidoras da Marvel e da DC ou desistir de fazer comic books.

Distribuir comic books é um saco. Em comparação com o mercado de livros, as tiragens são pequenas. A loja vai pedir 10 exemplares de um gibi, 40 de outro, 5 daquele lá e você tem que montar caixas com essa seleta. É um mercado de colecionadores chatos. O gibi é um pedacinho de papel, tinta e grampo bem frágil, mas não pode chegar com um cantinho amassado. A margem de lucro é pequena porque os gibis têm trinta, quarenta páginas e não podem sair muito caros pro consumidor final. Tem questões de tradição, que o leitor cobra e as editoras atendem.

Mesmo que fosse um monopólio e levasse algumas críticas, achava-se que só a Diamond ainda aguentava esse perrengue todo, e que só ela ia fazer isso até morrer o último colecionador de gibi nos EUA.

Aí surgiram outros interesses…

A Penguin Random House é o maior grupo editorial dos EUA, movimenta US$ 3,3 bilhões por ano e quis assumir esses perrengues com a Marvel. Vender gibis vai somar bem pouco àqueles bilhões. Aliás, a Penguin vai montar uma nova divisão só para lidar com Marvel e mercado direto, pois nunca trabalhou com comic books. Por que investir numa coisa que rende tão pouco?

O que se especula é que a Penguin Random House quer ficar também com tudo que não é comic book da Marvel: as coletâneas, as capas duras, as edições de luxo, as graphic novels. Os gibis com lombada. Diferente dos comic books, esse material é vendido em livrarias, supermercado, todas as megalojas online e circula pelo mundo inteiro.

Nos EUA, o gibi-livro já é um mercado maior que o dos comic books. E quem distribui as lombadas quadradas da Marvel por enquanto é a primeira concorrente da Penguin, a Hachette.

Mais: a Penguin Random House já distribui os quadrinhos de livraria da DC Comics e da Dark Horse. Quando a Penguin Random House concluir a compra de outra concorrente, a Simon & Schuster, também vai distribuir gibis de lombada quadrada de AWA Studios, Boom! Studios, Oni Press, Heavy Metal e uma lista de editoras menores do quadrinho norte-americano.

É uma consolidação de mercado.

Aí começa a especulação mais séria: depois da consolidação do mercado de quadrinhos pra livraria, a Penguin Random House vai continuar interessada no mercado dos comic books? O mercado trabalhoso, chato e que rende menos? Provavelmente não.

Aí o próprio formato do comic book está ameaçado. Por que lançar revista mensal do Homem-Aranha? Melhor fazer coletâneas dos 60 anos de história do Aranha, ou lançar novas histórias direto em graphic novel. Elas vendem mais, melhor e em mais pontos de venda. E isso vale para Deadpool, Thor, Capitã Marvel e, depois, Batman, Mulher-Maravilha, Arlequina e, depois, Saga, Lazarus, Monstress…

Tudo direto em livro. Histórias seriadas em capítulos de vinte e poucas páginas podem virar coisa do passado. Pra que cinco revistas do Batman por mês? Melhor fazer uma Bat-graphic novel por semestre e deixar as melhores Bat-histórias perenes vendendo em todas as versões, da econômica à mega-luxo.

Se a indústria for por este caminho, a produção de páginas cai drasticamente. Ponha na conta a quantidade de quadrinistas que não vai ter trabalho. E a falta de diversidade e invenção nas editoras. E a quantidade de comic shops que vai fechar porque não tem mais nada de exclusivo para vender.

É um movimento que muita gente previa. O comic book tradicional, criado nos anos 1930, era um formato pras bancas, em consignação, para vender altas tiragens em papel fuleiro. A sobrevida do formato se deve a essa invenção do direct market no final do século passado e da resistência da Diamond, junto às editoras, atendendo a fãs tradicionalistas.

Os tradicionalistas até tinham suas vantagens para os donos de editoras: eles são “o epicentro da cultura pop”, como diz um comunicado de ontem da Penguin Random House. É deles que vêm a força que desemboca nas bilheterias bilionárias, licenciamentos, conteúdo pra streaming etc. Mas está ficando caro manter essa tradição com as comic shops. E sabe-se lá até quando eles vão ser “epicentro da cultura pop”.

Além disso, tradicionalistas envelhecem e morrem, crises econômicas vão e vêm, pandemias fecham lojas, papel fica mais caro… essa morte do comic book está anunciada há tempos. A notícia de ontem pode ter sido outro prego no caixão do formato.

Em 1995, a Marvel comprou uma distribuidora própria e passou a distribuir exclusivamente com ela. A medida deu errado pra própria Marvel e ainda quebrou um monte de distribuidoras que atendiam o mercado direto, consolidando o monopólio da Diamond. Até hoje, 26 anos depois, se fala de como a decisão da Marvel abalou o mercado.

Até o final desta década, quem sabe antes, vai ter gente dizendo que o acordo de ontem entre Marvel e Penguin Random House mudou o mercado mais uma vez.

CAVALEIRO DAS TREVAS, 35 ANOS

Material de divulgação de Cavaleiro das Trevas em 1986

Falando em Bat-histórias perenes, Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley, completou 35 anos no último domingo, dia 20. Paul Levitz, que era executivo da DC Comics na época, escreveu para o site 13th Dimension sobre o momento em que o editorial da DC descobriu que Cavaleiro n. 1 tinha esgotado.

É uma leitura curta, mas cheia de detalhes que hoje são comédia. De como a editora apostou numa tiragem “arriscada” de 125 mil exemplares (e tiveram que quase quadruplicar esse número, sem contar coletâneas) e do medo de lançar uma HQ de luxo a US$ 2,95 quando os gibis de linha custavam 75 cents.

(A propósito – e complementando o texto mais acima – os gibis de linha da DC vão pular para US$ 5,99 em junho.)

O roteirista Fred Van Lente (Deadpool, Hércules) também escreveu sobre Cavaleiro das Trevas no 13th Dimension e encontrou vários pontos negativos:

"Quando você cresce, você percebe que o mundo é lotado de Batmans, pelo menos de Batmans na versão Cavaleiro: brutamontes furiosos que saem quebrando tudo e tirando tempo de todos, mas sempre se acham a vítima."

Feliz aniversário, Cavaleiro das Trevas? (E volte na matéria que escrevi sobre a série quando ela fez 30 anos.)

AS CARTAS DE STEVE DITKO

Trecho de uma das cartas de Ditko.

Outra ótima leitura da semana. Este artigo no Comics Journal sobre as cartas de Steve Ditko. Que começa assim:

Quando Steve Ditko faleceu, em 2018, a família teve dificuldade para abrir a porta do seu estúdio, pois ela estava barrada por pilhas de correspondência fechada.

Cartas eram o meio de comunicação preferido do recluso Ditko. Aparentemente, ele respondia a todo mundo por quem se interessasse, para falar de quadrinhos e da vida. O jornalista brasileiro Marcus Santana, por exemplo, conta que trocou diversas cartas com o norte-americano no fim da vida.

O texto de Robert Elder compara a produção do escritor Ernest Hemingway – que se estima que escreveu 6 mil cartas em vida – com a de Ditko. E diz que o quadrinista supera em muito o número de cartas de Hemingway.

Para quem ainda não leu, Rorschach, a minissérie de Tom King e Jorge Fornés que está rolando nos EUA, é uma homenagem a Ditko e, particularmente na última edição que saiu, a sua mania epistolar. Rorschach, de Watchmen, é baseado em uma criação de Ditko: o Questão.

FILHO DA CAMISINHA FURADA

A editora Conrad anunciou um clássico: Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse. Ícone da temática homossexual nos quadrinhos, a graphic novel com arte detalhadíssima trata de preconceito no sul dos EUA nos anos 1960.

O álbum já teve várias edições nos EUA. No ano passado, por ocasião dos seus 25 anos, a edição comemorativa saiu com material inédito e introdução de Alison Bechdel.

Sai ainda no primeiro semestre, com tradução de Dandara Palankof.

DAVID LYNCH’S DOMU

David Lynch, de Twin Peaks, quase dirigiu uma adaptação para o cinema de Domu, de Katsuhiro Otomo. A produção chegou a ter roteiro e ia acontecer nos anos 1990. Quem conta é o diretor de arte que quase fechou a parceria entre o diretor norte-americano e o mangaká, Nilo Rodis-Jamero, no /Film.

Rodis-Jamero, associado a George Lucas, tratou com Otomo no Japão e apresentou a história a Lynch. Domu conta o conflito entre um velho e uma menina com vastos poderes mentais, que estão provocando o caos em um prédio residencial.

Segundo Rodis-Jamera, Lynch topou assim que ouviu como seria a primeira cena. Mas o projeto não foi para a frente devido a um problema com a produtora que ia pagar o projeto.

Até ali, milagrosamente, Otomo – exigente e difícil – já tinha concordado com a prévia do roteiro e com Lynch. O quadrinista japonês atualmente proíbe republicações de Domu no mundo inteiro.

YANG, ENGANADO

Gene Luen Yang (Chinês Americano, O Novo Superman) resolveu reagir com um quadrinho ao último massacre com motivação racista nos EUA – seis imigrantes asiáticas entre oito mortos numa casa de massagens de Atlanta, no último dia 16. Mas não é um quadrinho com muita esperança.

Você lê a HQ completa acima. O final é poderoso.

Uma vez que outra, acontece alguma coisa. Começa a passar um seriado com gente com a minha cara, e gente que não tem minha cara assiste. Ou alguém com a minha cara ganha um cargo importante e gente que não tem minha cara para e ouve.

Ou eu vejo meus filhos cantarem no colégio com tanta segurança, que por um instante eu me convenço que eles nunca deram bola para o formato dos olhos que eles têm.

E aí eu penso:

A discussão acabou.

Hora das minhas palavras, minhas ideias e minhas páginas de gibi tratarem de outro assunto.

(pausa)

Até agora, essa sensação sempre foi engano.

VIRANDO PÁGINAS

Morpheus por Glenn Fabry

Glenn Fabry, o artista britânico conhecido pelas capas de Hellblazer e de Preacher, completou 60 anos na última quarta-feira, dia 24. (E o câncer de pulmão que ele anunciou em 2018 felizmente tinha sido um diagnóstico errado). Ele prepara um novo projeto para este ano, chamado Sekhmet.

Sandman n. 75, a conclusão da primeira e grandiosa série de Neil Gaiman e companhia, saiu em 27 de março de 1996, há 25 anos. A série já tinha durado mais do que Gaiman queria – e mesmo assim o universo que ele criou é explorado até hoje pela DC Comics. O seriado da Netflix baseado na HQ está previsto para este ano.

A primeira adaptação de quadrinhos de super-herói para o audiovisual completa 80 anos neste domingo, dia 28. A cinessérie As Aventuras do Capitão Marvel, da Republic Pictures, estreou nos cinemas neste dia em 1941.

No dia 1º de abril, House of Secrets n. 92 completa 50 anos – e, com ela, o Monstro do Pântano, criação de Len Wein e Bernie Wrightson.

UMA PÁGINA

De Marvel n. 5, numa história curtinha de Nick Fury com roteiro e desenho de Adam Hughes. Achei os três últimos quadros de uma perfeição sem igual.

UMA CAPA

De Greg Smallwood em Batman/Superman n. 16, lançamento desta semana.

(o)

Sobre o autor

Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.

Sobre a coluna

Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.

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