Ron Wimberly é um quadrinista que mora em Nova York. Já passou por Marvel, DC e hoje em dia faz trabalho mais autoral. É negro e suas HQs autorais costumam abordar racismo. Em 2015, ele fez uma excelente, chamada “Lighten Up”, sobre colorização de pele nas HQs. Concorreu ao Eisner, o prêmio máximo dos quadrinhos.
Desde o final de agosto, uma página de Wimberly circula entre os colegas da gringa. Devia ter saído no New York Times, numa seção em que vários quadrinistas estão postando histórias de diário de quarentena. Não saiu. A tradução está logo abaixo.
“Fazer quadrinhos exige dedicação e jornadas na frente da prancheta. Por isso, antes mesmo da Covid, eu já me ‘isolava’. Mas, quando o sol caía, eu saía de casa… naquela hora em que a luz troca de lugar. É quando fica o claro e o escuro ficam mais aparentes.
Acho que era dia 29. As ruas estavam iluminadas.
Olhando das trevas para a luz, vi uma luz que acendeu outra luz em mim. Me senti menos alienado. O que você vê quando, das trevas, enxerga a luz?"
O motivo da página não ter saído foi a imagem central: a viatura pegando fogo. Segundo Wimberly, seu editor no Times explicou que ela gerou muita discussão no jornal, até altos escalões. Eles poderiam publicar se ele substituísse aquele quadro. Wimberly preferiu não alterar nada e publicou a página no seu Patreon.
O quadrinista fazia referência às manifestações contra violência policial que correm nos EUA desde maio. Os vídeos em que policiais assassinam George Floyd, em Minneapolis, e disparam sete vezes contra Jacob Blake, em Kenosha, entre outros casos (e duzentos e cinquenta anos de história) levaram a manifestações de todos os tipos. Houve embates entre polícia e manifestantes de rua, e discussões sobre as verbas públicas para o policiamento. O caso é dos Estados Unidos, mas coisas parecidas acontecem aqui do lado.
Em junho, a Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar entrou com um “pedido de esclarecimento” à Folha de S. Paulo e aos cartunistas Laerte, João Montanaro, Alberto Benett e Claudio Mor. Eles teriam que explicar cinco charges publicadas em 2019, todas sobre violência policial.
As charges saíram devido ao caso mais gritante de violência policial na época: uma ação da PM de São Paulo em um baile funk que terminou com nove jovens mortos. Até o momento, não foi instaurado processo contra o jornal ou os cartunistas.
Entre outros casos recentes no Brasil, um garoto de 14 anos morreu com um tiro de fuzil nas costas durante operação da polícia federal e civil no Rio de Janeiro, em maio. No mesmo mês, uma mulher foi pisoteada por um PM em São Paulo e teve que colocar uma haste e dois pinos na tíbia. Em agosto, Rogério Ferreira da Silva foi parado por dois agentes das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas, em São Paulo, por dirigir uma moto sem emplacamento. Foi morto com um tiro. Todos eram negros.
Segundo o Monitor da Violência do G1, 3.148 pessoas foram mortas por policiais no primeiro semestre de 2020, no Brasil. Das (poucas) informações que se tem sobre raça dos falecidos, três em cada quatro são negros. Nos EUA, segundo o MappingPoliceViolence.org, aconteceram 765 mortes por policiais em 2020, sendo 28% dos falecidos negros.
Quadrinhos não mudam o mundo, mas mexem com cabeças. (você não estaria lendo isso aqui se eles não tivessem mexido com a sua) Cabeças, sim, mexem mãos e pés que mudam o mundo. É isso que os censores não querem.
Segundo o jornalista e professor Paulo Ramos – que prepara um livro-reportagem sobre casos recentes de censura aos quadrinhos e ao humor gráfico – as charges tendem a chamar mais atenção pelo fato de trazerem uma crítica ao que se passa no noticiário.
“Elas cumprem sua função de interpretar criticamente quem está no comando do país. Mas isso não é visto como crítica por quem é adepto desse segmento político. É visto como ofensa, calúnia, ataque gratuito. Os reflexos disso se dão nas manifestações de ódio lidas nas redes sociais e, em casos plurais, infelizmente, por vias jurídicas, numa clara tentativa de censurar o conteúdo e o autor.”
Felizmente, gente como Ron Wimberly não se retrai por conta dos censores.
E nem Benett.
— Benett (@Benett_) August 30, 2020
Nem Laerte.
Esta é a charge de Laerte publicada na #folha nesta terça (18). Quer ver mais charges no jornal? Acesse https://t.co/SYBMd91i4u #charge #humor #fsp #folhadespaulo #folha #laerte #aborto #estupro #menina10anos pic.twitter.com/GeGR8VXzk5
— Folha de S.Paulo (@folha) August 18, 2020
Nem Claudio Mor.
Nem Montanaro.
— João Montanaro (@joaomontanaro) August 31, 2020
DESPEDIDA
O carioca Bruno Drummond, além de estilo, tem longa carreira fazendo tiras – como Gente Fina, no Globo – e livros. Mas nunca tinha feito uma graphic novel.
Sua primeira GN, A Despedida, sai este ano. Já está garantida no Catarse, onde começou a bater metas estendidas. E é estilosíssima, como você vê nesse preview exclusivo.
Na sinopse do autor:
“Silvia está se despedindo da vida de solteira. Ela vai se casar. Edgar está se despedindo da vida. Ele quer se matar. O encontro desses dois personagens opostos numa noite de verão carioca pode mudar tudo. Ou nada.”
CHOREM COMIGO
Choro toda vez que a Sunday Press Books anuncia um livro. A Sunday é uma editora da Califórnia, de um homem só. Um senhorzinho chamado Peter Maresca, que caça as melhores reproduções de tiras de jornal clássicas para republicar no formato em que saíram originalmente: gigantes.
É material de oitenta, noventa, cem anos atrás, até mais. Little Nemo, Krazy Kat, Gasoline Alley, Dick Tracy. Curiosidades como The Upside-Downs, aquela tira que você lia de cima para baixo e depois de baixo para cima. Ou os primeiros trabalhos de E.C. Segar, criador do Popeye.
O último anúncio é de Gross Exaggerations, coleção de tiras de Milt Gross (1895-1953). Pelas fotos não dá para sacar o tamanho, mas os livros da Sunday Press raramente têm menos de 40 cm de altura.
Não é só a Sunday Press. A Taschen, editora alemã conhecida pelos livrões de arte, lançou há pouco The History of EC Comics, de Grant Geissman - confira imagens aqui. É o histórico da famosa editora que fez o quadrinho sci-fi e de terror nos anos 1950, com mais ilustrações do que você acha que tem direito.
Tem quase 600 páginas, 29 x 39,5 cm e pesa seis quilos. O preço é uma indelicadeza.
Com o dólar do jeito que está, a gente só pode chorar.
UMA PÁGINA
De Wonder Woman: Dead Earth n. 3, roteiro e arte de Daniel Warren Johnson. Maior história de ação que a amazona já teve, a minissérie se passa num futuro apocalíptico.
O que ela faz com Superman depois dessa página é uma das ideias mais grotescas e brilhantes que já se viu com o kriptoniano.
Deve sair por aqui até ano que vem.
UMA CAPA
De A Solidão de um Quadrinho Sem Fim, de Adrian Tomine. Lançada há questão de semanas nos EUA, a graphic novel vai chegar rápido aqui. Traz uma sequência de contos autobiográficos sobre a carreira de quadrinista.
Sou suspeito para falar, mas é meu preferido do ano. A tradução é minha.
A Nemo divulgou há poucos dias que a edição nacional vai reproduzir a original: lembra um moleskine, aqueles bloquinhos de desenho chiques, com elástico. Sai no final deste mês. Tem preview aqui.
Tomine, em entrevista recente: “Eu ia odiar livro em que o autor se faz de herói. Porque não é verdade. Se você for, tipo, a Malala, aí você pode se colocar de herói do próprio livro. Mas se for eu de mimimi por que não tenho tanto fã quanto o Neil Gaiman? Aí não dá.”
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.