Rainha Cleópatra (Netflix/Divulgação)

Créditos da imagem: Rainha Cleópatra (Netflix/Divulgação)

Séries e TV

Crítica

Rainha Cleópatra: Docudrama da Netflix é a décima primeira praga do Egito

Cercada de polêmicas envolvendo a etnia da Rainha, a produção da Netflix soa como uma simulação ruim de um programa do History Channel

Omelete
4 min de leitura
13.05.2023, às 14H44.

No início da década de 60, a Fox Studios começava seu projeto mais ambicioso: a cinebiografia da Rainha Cleópatra, que tinha o ultrajante orçamento de mais de 300 milhões de dólares (convertidos para os dias de hoje) e marcava a ascensão definitiva de uma das maiores estrelas de Hollywood. O filme foi um fracasso retumbante, quase faliu a empresa, não venceu os prêmios esperados e foi ofuscado pelo enlace de seus protagonistas na vida real. Mas, ficou a imagem de Elizabeth Taylor — a escolhida para a empreitada — como um dos maiores símbolos de beleza do mundo. 

Em retrospectiva, a escolha de Liz Taylor para o papel incomodou pouca gente. Alguns críticos apontaram que a atriz era branca demais para se passar por uma Rainha do Egito, mas lá naqueles tempos, o mundo estava acostumado com esse tipo de apropriação. Além disso, não seria impossível atribuir o fracasso do filme a coisas que também fossem mais sensoriais. Taylor nunca foi muito lembrada nesse longa por conta de sua atuação e sim por conta do luxo que a cercava em absolutamente todas as sequências. 

Desde então, muitas outras atrizes viveram Cleópatra, sempre altiva, soberana, sensual e misteriosa. Contudo, há um registro interessante dessa personagem na série Roma, que ficou no ar na HBO por apenas duas temporadas. A série era ousada e contava a vida daquela sanguínea sociedade por uma ótica extrema, comprometida com o que ela tinha de mais sombrio e com zero romantização de fatos. Cleópatra apareceu nessa série… E lá estava sempre chapada, desgrenhada, bêbada, tramando intrigas e corrupções. Ela era vivida por Lyndsey Marshal, uma atriz incrível, que apesar de branca passava longe do physique de realeza que sempre cercou a personagem. 

As autoridades, pesquisadores e historiadores do Egito não pareceram incomodados com isso. Roma apresentou sua versão da egípcia e convenceu, sem maiores problemas. O que não aconteceu agora, em 2023, quando após o trailer que revelou a atriz Adele James como protagonista ser lançado, o país se uniu numa corrente de completa rejeição à escolha da atriz para a série. Ameaças vieram de todos os lados; era inadmissível uma atriz preta assumir a posição… A polêmica impulsionou o docudrama e agora poderíamos ver finalmente o que a produção de Jada Pinkett Smith havia preparado para nós.

Inventando Cleópatra

Como dito antes nesse texto, Cleópatra foi anunciada pela plataforma como um “docudrama”; ou seja, a parte documental seria intercalada com encenações. A diferença aqui está na profundidade dessas encenações. Quase todo documentário tem simulações encenadas, mas elas escondem atores em edições que não privilegiam personagens e sim acontecimentos. Em um docudrama as simulações são construídas -  ou deveriam ser – como se fossem peças de ficção comum, com diálogos e ações visíveis na estrutura. Então, em 4 episódios, Cleópatra alterna historiadores contando a vida da Rainha, enquanto vemos partes disso sendo encenadas com mais “empenho” criativo. 

As intenções são muito claras: o que Jada quer é enaltecer a figura da Rainha, por isso, a cada início de episódio, ela mesma prepara o público com uma narração apaixonada sobre a icônica egípcia. Logo depois dessa narração, começa a surgir Cleópatra como a personalidade infalível, sem defeitos e falhas, cujas decisões questionáveis são sempre atribuídas a estratégias defensivas. Esse é um segmento de celebração de Rainhas Africanas, estrelado por uma atriz preta… com todas as melhores intenções do mundo. Mas, atrelada a toda política inevitável que vem com esses títulos precisa estar a qualidade. No caso desse docudrama, não há pontos de redenção. 

A decisão de misturar documentário com dramatização parece deixar as duas coisas pelo caminho. A parte documental mostra especialistas descrevendo os sentimentos de Cleópatra como se fossem romancistas; enquanto a parte dramatizada ignora completamente os aspectos sócio-políticos na hora de construir seus diálogos. A Cleópatra política fica na boca da parte documental; e nas cenas dramatizadas ela é só a parte que protagoniza os romances com César e Marco Antônio. 

Em vários momentos a sensação é de que estamos vendo um documentário do History ou do Discovery Channel. Apesar do cuidado visual, o orçamento é curto e o resultado é nenhuma grandiosidade, com cenas aprisionadas em locações internas enfadonhas. O texto das sequências é rasteiro, empobrecido por excessos sentimentais, como se vê em novelas ruins, criadas para existir e não para encantar. Vamos da historiadora descrevendo emoções que ela não tem a menor condição de determinar, para a ilustração cafona dessa descrição. A conclusão é óbvia: se a vontade era de especular sobre os sentimentos de Cleópatra, deveriam ter escolhido apenas a ficção como base. É muito estranho ver um estudioso do assunto descrever pensamentos e não dados. 

Adele James dá tudo de si no meio desse equívoco todo. Ela se mostra uma escolha acertada e toda discussão sobre a etnia da Rainha é completamente desnecessária do ponto de vista artístico. Essa discussão acabou sendo importante muito mais para ilustrar a hipocrisia de quem invocou os protestos. A Cleópatra da HBO era odiosa e longe da imagem considerada “justificável” para os especialistas puristas; mas… enfim, sabemos que “mas” é esse. 

Infelizmente, tudo isso perde perspectiva quando olhamos para o produto que resultou do desafio que essa escalação trouxe. Cleópatra é um devaneio equivocado, sem apuro histórico ou dramático, querendo ser uma peça de completude sobre a Rainha, mas terminando por praguejar sobre a tentativa. Talvez um documentário do Discovery lhe faça mais justiça, enfim.

Nota do Crítico
Ruim
Rainha Cleópatra
Encerrada (2023- )
Rainha Cleópatra
Encerrada (2023- )

Criado por: Jada Pinkett Smith

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
Oferecido por

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