Desde que foi anunciado em 2019, o live-action de One Piece é alvo de previsões tanto otimistas quanto pessimistas. Por um lado, fãs de longa data de Monkey D. Luffy ansiavam ver o “pirata que estica” e sua tripulação em carne e osso; o mangá publicado desde 1997 é o mais vendido da história e a série da Netflix atinge pelo menos duas gerações de leitores pelo mundo. Por outro lado, as adaptações de animes e mangás não têm um histórico muito favorável em Hollywood, o que justifica a preocupação com uma americanização exagerada. A primeira temporada da série dá munição para ambas essas expectativas.
O começo é animador. O primeiro episódio se livra de algumas das gorduras do mangá e garante que Luffy (Iñaki Godoy) tenha uma estreia ágil e carismática, recriando o sentimento de descoberta colocado por Eiichiro Oda em sua obra original. Essa agilidade, infelizmente, rapidamente se transforma em pressa e descuido, com o subtexto revolucionário que o mangaká insere em sua trama há mais de 25 anos perdendo seu lugar de destaque no seriado.
A forma como os roteiristas tentam encaixar de cinco a oito episódios do anime em um único capítulo live-action também prejudica a forma como seus personagens são desenvolvidos. Enquanto Luffy, Nami (Emily Rudd) e Zoro (Mackenyu) têm seus momentos para brilhar, Usopp (Jacob Romero) e Sanji (Taz Skylar) nunca encontram seu lugar na trama e, com exceção dos arcos que os apresentam, pouco afetam ou interagem com o mundo que a série tenta construir.
Os coadjuvantes, tão importantes na obra original, fazem pouco mais que figuração no live-action. Ao invés de explorar as vilas e ilhas visitadas pelo Going Merry, One Piece dedica horas nas desventuras de Koby (Morgan Davies) e Helmeppo (Aidan Scott) sob o comando de Garp (Vincent Regan), perdendo de vista a população heterogênea que habita o East Blue. Além de esvaziar o mundo de Oda, a decisão também mina o desenvolvimento dos protagonistas, que têm pouco ou nenhum contato com os personagens cuja vida afetam ao longo de sua jornada.
Buscando ser uma porta de entrada para novos fãs, essa primeira temporada perde a mão na simplificação de alguns conceitos importantes para esse universo. Ainda que mudanças sejam inevitáveis em qualquer adaptação, os roteiristas exageram na infantilização. Quem conhece One Piece há mais de uma década e se preocupava com a adaptação antes da estreia então deve cismar com cenas que parecem pensadas para espectadores na primeira infância e não para o público já crescido.
A principal vítima dessa simplificação hollywoodiana é a crítica social ferrenha que dá estofo à obra de Oda. Ainda que traga uma argumentação contra os abusos da Marinha e do Governo Mundial, o novo One Piece evita se aprofundar nesse debate ao assumir uma postura “isentona”. O grande exemplo disso está na adaptação do arco “Arlong Park”, que troca os comentários sobre o surgimento e a prosperidade de milícias em governos armamentistas e punitivistas por uma rasa contextualização histórica dos homens-peixe e sua marginalização.
Se narrativamente o live-action de One Piece parece mais raso, a escalação do elenco principal é certeira. Iñaki Godoy entende Luffy e sua personalidade simples e otimista, dando à série um carisma muito semelhante ao que sua contraparte animada dá ao anime. Ainda assim, o maior destaque é Emily Rudd como Nami. Tendo mais material emocional para trabalhar que seus colegas, a atriz se coloca rapidamente como o grande atrativo, com um trabalho louvável mesmo nos piores episódios — que, ironicamente, são os que contam a história de sua personagem.
A forma como a série desenvolve seu conflito principal reflete a adequação para os padrões ocidentais; a construção de Arlong (McKinley Belcher III) como o grande antagonista da temporada organiza One Piece para além de seu caráter episódico. A sombra que o homem-peixe exerce sobre os protagonistas, especialmente Nami, é sentida ao longo de todo o primeiro ano e faz com que sua queda seja um clímax catártico que amarra satisfatoriamente esses primeiros oito episódios.
Visualmente, One Piece pouco deve à obra de Oda. Os efeitos visuais dos poderes de Luffy, que preocuparam fãs nos meses que antecederam a estreia da série, estão impecáveis. Mesmo quando escondidos em cenários escuros esporádicos, os braços elásticos do pirata são verossímeis o bastante para que o espectador compre e se divirta com o absurdo desse universo. A série também acerta ao investir num estilo cartunesco próximo ao do anime, com cores berrantes usadas a todo o momento para ressaltar a atmosfera otimista que permeia as aventuras dos Chapéus de Palha.
Mesmo que uma ou outra luta seja travada predominantemente no escuro para maquiar problemas orçamentários, as batalhas de One Piece são bem coreografadas e filmadas, especialmente as que contam com Zoro entre os combatentes. Assim como nas versões originais, todo embate do live-action tem seu propósito no desenvolvimento da história. Cada golpe e movimento dá um novo detalhe da personalidade de quem os executa e aproxima personagens e espectadores como poucos diálogos do roteiro americanizado foram capazes de fazer.
Como simples porta de entrada para novos fãs, a versão de One Piece da Netflix funciona graças ao carisma e à dedicação de seu elenco principal, mas obviamente sente-se o peso da responsabilidade e do tempo quando se compara a novidade com o mangá ou o anime. Ainda que nada impeça a série de atrair um novo público para a obra de Oda, espectadores mais antigos dificilmente verão o live-action como algo além de mais uma tentativa cínica de encaixar um título de alcance mundial à sensibilidade do consumidor ocidental.
Criado por: Steven Maeda, Matt Owens
Duração: 1 temporada