Ao entrar no estúdio de dublagem instalado no complexo da Mattel em El Segundo, na Califórnia (bem pertinho do aeroporto internacional de Los Angeles), a decoração maximalista que domina o prédio todo - com brinquedos espalhados por cubículos e mesas, quadros pendurados nas paredes e até réplicas em tamanho real de carros famosos das marcas da empresa - não é o bastante para distrair de um detalhe importante: duas estatuetas do Emmy, instaladas em uma prateleira ao lado de bonecos elaborados de He-Man, Esqueleto e outros personagens de Mestres do Universo.
O Omelete participou, a convite da Mattel, de uma tour pelas várias etapas que definem o processo de produção de Mestres do Universo. O estúdio de dublagem foi uma das paradas do passeio, definido por um tom de reverência pela e orgulho da própria história da franquia, e por alguns números impressionantes: por exemplo, os compositores (sete no total) e técnicos de som da Mattel produzem uma média de 100 peças originais de música por ano para os brinquedos da marca (os primeiros a incluir pequenos vinis para reproduzir sons, já nos anos 1960), além das animações, conteúdos de redes sociais e videogames relacionados.
Um dos meus colegas jornalistas na visita à Mattel, em Los Angeles, pode colocar sua voz em um trecho do desenho animado dos Mestres do Universo.
— Caio Coletti (@caiocoletti) October 13, 2022
Confere o processo aí: pic.twitter.com/ZRKXsbAiMI
Antes que uma Salvando Eternia ou uma He-Man e os Mestres do Universo possam chegar ao catálogo da Netflix, no entanto, é preciso que um grupo de designers e técnicos especializados se debrucem sobre uma mitologia que acaba de completar 40 anos de criação, e saiam dela com produtos que renovem o fascínio do público jovem enquanto mantêm engajados os fãs de longa data. É um processo que esses próprios profissionais definem como um equilíbrio complexo: artesanal, mas com um olho na produção em massa que vai precisar acontecer mais à frente.
Tudo começa com um dos designers da equipe, que frequentemente recorre aos arquivos da Mattel ou a sites especializados em brinquedos vintage para conseguir colocar as mãos em um dos antigos produtos da linha Mestres do Universo. A fisicalidade do brinquedo é necessária, segundo um dos designers, para “entender o que forma cada personagem” da mitologia, o que é essencial para um brinquedo que o representa, e o que pode ser melhorado em relação a linhas anteriores.
Os primeiros rascunhos dão início a um processo de ida e volta entre os departamentos de design e de construção de modelos da empresa. As ideias que estão no papel são realizáveis? O primeiro modelo físico do personagem, feito em resina a partir dos desenhos, está se movendo como deveria? E as cores, estão perfeitas como aplicadas ao material? É hora de entender quaisquer possíveis problemas que as figuras de ação podem ter na prática - um exemplo dado a nós foi o novo boneco do personagem Snout Spout, famoso por sua cabeça biônica imitando um elefante.
O pesadelo logístico para que a tromba do brinquedo pudesse de fato soltar água sem (como no modelo original) limitar os seus movimentos levou o protótipo a passar por várias versões diferentes até chegar à versão que está nas lojas pela linha Origins. Esse vai-e-vem resultou em muito trabalho para o setor de impressão 3D da Mattel, outra parada da nossa tour. Por lá, três tipos diferentes de impressora (algumas avaliadas em US$ 500 mil) criam modelos super detalhados, que demoram horas para ficar prontos (são 6 centímetros de impressão por hora, mais ou menos).
Uma das impressoras 3D da Mattel em ação.
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O técnico nos disse que o conjunto de máquinas da empresa produz 2.2 mil peças por mês, e que um dos modelos custou US$ 500 mil. pic.twitter.com/fRJzd6WVBX
Os números continuam impressionantes: uma média de 2,2 mil peças por dia são impressas no complexo da Mattel em El Segundo, entre protótipos completos e projetos menores, em que elementos minúsculos da construção de um brinquedo precisam se encaixar com todos os outros de forma perfeita. As figuras de ação mais problemáticas, como a de Snout Spout, podem passar por uma dezena de iterações diferentes, todas impressas de forma completa para inspeção dos designers, antes de encontrarem sua encarnação final.
Aliás, as preocupações com as diferentes linhas é chave: enquanto Origins foca na modernização de figuras que já existem, Masterverse traz as demais variações do universo He-Man, e New Eternia é onde os designers podem deixar a imaginação fluir sem restrições canônicas. E se você achou que acertar todos os detalhes dos bonecos e seus acessórios era o fim da história, pense de novo, porque a etapa final tem a ver com as belíssimas artes que estampam as embalagens de Mestres do Universo.
A franquia sempre teve uma estética muito específica, remetendo às ilustrações de peças promocionais de Conan, John Carter, Flash Gordon e outras sagas pulp do mesmo período. O pintor William George foi crucial na construção dessa estética durante a primeira leva de produtos de Mestres do Universo nos anos 1980, e muitas das obras dele são reproduzidas pelas paredes do complexo da Mattel.
Dos esboços a lápis que enfeitam as caixas de alguns dos itens de luxo da marca às pinturas bem mais coloridas da série Origins, que formam a sua própria narrativa (cada uma das caixas dá dicas sobre os próximos bonecos que estão em desenvolvimento), todas as artes passam por vários estágios de sofisticação e desenvolvimento até serem aprovadas para produção.
Entender esse processo todo, a quantidade de trabalho, energia criativa e recursos materiais necessários para que ele funcione, implica inevitavelmente em ganhar mais respeito pelo produto final. Contar uma história através de plástico e papelão, preencher com arte cada espaço da embalagem que vai carregar esse artefato ao redor do mundo, entender como outras pessoas vão querer criar suas próprias narrativas com ele… Quando feito do jeito certo, este só pode ser um trabalho de amor.
Durante o nosso passeio pelo complexo da Mattel, um dos designers mencionou que, tirando as novas tecnologias, “o trabalho é o mesmo que era 40 anos atrás”. É fácil de acreditar nele: criatividade, afinal, é inerentemente humana e atemporal.
*O jornalista viajou a convite da Mattel