“Isso aqui é gay demais”. Esse foi o feedback recebido por Don Mancini quando os executivos da Universal Pictures leram o roteiro de O Filho de Chucky, no início dos anos 2000. Apesar do sucesso do longa anterior da franquia, A Noiva de Chucky (1998), a visão de Mancini para a continuação se provaria ousada demais para a Universal, que abriu mão dos direitos do longa, lançado em 2004 pela Rogue Pictures.
Mas o que era “gay demais” para a Universal? Bom, O Filho de Chucky nos introduz ao personagem do título, Glen/Glenda (voz de Billy Boyd), fruto da relação entre Chucky (Brad Dourif) e Tiffany (Jennifer Tilly) - quanto menos você pensar na logística disso, tendo em vista que ambos são bonecos, melhor. Naturalmente gentil e incapaz de violência, Glen/Glenda explora a sua identidade de gênero durante o longa, eventualmente decidindo que não precisa ser nem um menino, nem uma menina.
Em 2004, a ideia de não-binariedade existia (a teoria queer de Judith Butler está por aí desde os anos 1990), mas não era tão difundida fora dos meios acadêmicos, como é cada vez mais hoje. A existência de indivíduos transgênero era mais amplamente reconhecida, e o próprio nome de Glen/Glenda é uma homenagem ao “clássico” Glen or Glenda? (1953), de Ed Wood (o infame “pior diretor da história”), que abordava transgeneridade e crossdressing de maneira ousada para a época - embora quase comicamente inapropriada se vista hoje em dia.
Tratar de qualquer um desses assuntos em uma das maiores franquias de terror de Hollywood, no entanto, era algo inédito, especialmente levando-se em conta que Glen/Glenda é uma figura heróica em O Filho de Chucky. Dentro da moralidade perturbada da série, o personagem é celebrado tanto por sua recusa em se envolver com a violência dos pais, no início do filme, quanto por seu eventual abraço de todas as partes de si - inclusive a parte loucamente homicida. Nunca é dito ou sugerido que Glen/Glenda é alguém contra quem devemos torcer. Pelo contrário, o filme e o espectador permanecem firmemente ao seu lado durante a trama.
Não foi só a Universal que olhou para tudo isso e torceu o nariz, como lembrou Mancini em entrevista ao Buzzfeed em 2017. “Boa parte dos fãs mais dedicados de filmes de terror são caras jovens e heterossexuais. Eles falaram: ‘Que p*rra é essa?’”, relatou o cineasta. “Mas você nunca pode agradar a todo mundo. Eu prefiro fazer algo ousado e interessante, mesmo que vá alienar algumas pessoas”.
Nova era
O painel de Chucky na Comic-Con @ Home do mês passado revelou, entre outras novidades, que o protagonista da nova série de TV da franquia será Jake (Zackary Arthur), um adolescente gay apaixonado por um de seus melhores amigos, Devon (Björgvin Arnardson). No trailer lançado durante a convenção - veja acima -, vemos que Jake luta contra o bullying em sua escola, e descobrimos como Chucky se torna uma espécie de arma para ele nessa batalha.
Embora esse seja o primeiro protagonista abertamente gay de Brinquedo Assassino, a ideia da franquia como uma celebração (violenta e imoral, sim, mas também desavergonhadamente divertida e eventualmente sentida) dos excluídos da sociedade não é nova, e nem começou com Glen/Glenda em O Filho de Chucky.
De fato, o primeiro protagonista da franquia, Andy Barclay (Alex Vincent), nunca foi exatamente um garoto bem ajustado. Mesmo antes de Chucky entrar em sua vida, em Brinquedo Assassino (1988), Andy não é mostrado como um menino de muitos amigos - não o vemos interagir com nenhuma outra criança no filme, e ele foge da escola para cumprir uma das missões homicidas do seu novo boneco favorito.
Depois do trauma provocado por Chucky, então, ele vira um outsider para sempre. Em Brinquedo Assassino 2 (1990), ele entra no sistema de adoção e sua grande aliada é uma garota órfã chamada Kyle (Christine Elise McCarthy), que se apresenta de forma notavelmente andrógina para uma heroína de terror. Já em Brinquedo Assassino 3 (1991), Andy vai parar em uma escola militar, onde seus aliados contra Chucky são um garoto vítima de bullying e uma garota do tipo durona, que ensina o nosso protagonista sensível e traumatizado a atirar, e por quem ele se apaixona.
“Eu acho que a identificação de pessoas LGBTQIA+ com os filmes de terror tem a ver com a identificação dos outsiders, de figuras que vão do monstro de Frankenstein a Carrie, a Estranha. Nos filmes, há sempre este monstro solitário e incompreendido, ou ao menos o que a sociedade vê como um monstro. Mas você, como espectador, está com eles, dentro do coração deles, e sabe que são lindos, ou que foram corrompidos por um mundo maligno”, comentou Mancini naquela entrevista ao Buzzfeed.
Sangue e famílias quebradas
Durante os sete filmes de Brinquedo Assassino até hoje (o remake de 2019 será ignorado pela série de TV), vários outros momentos sublinham esse subtexto queer da franquia, enquanto outros explicitam a tentativa de representatividade.
Em Brinquedo Assassino 3, duas meninas passam batom em Chucky durante uma brincadeira, e o boneco diz que “isso é uma declaração de guerra” contra ele quando finalmente está sozinho. A Noiva de Chucky tem um personagem gay, David (Gordon Michael Woolvett), que é consistentemente retratado como a pessoa mais inteligente do filme, até ser atropelado por um caminhão. A Maldição de Chucky (2013) inclui um casal lésbico entre as vítimas do boneco, e O Culto de Chucky (2017) introduz um gentil enfermeiro gay, que também não sobrevive ao massacre da vez - mas todos são devidamente desenvolvidos antes de serem despachados.
No final do longa de 2017, o próprio Chucky entra nessa brincadeira ao possuir o corpo de Nica (Fiona Dourif) e tascar um beijão em sua eterna amante, Tiffany, antes de ir embora com ela em seu carro. “Isso aqui é diferente”, diz o boneco em seu corpo feminino. “Não sei… Funciona para mim”, responde Tiff, interpretada por Tilly, ela mesma um ícone LGBTQIA+ por seu papel em Ligadas pelo Desejo (1996).
Por toda a deliciosa zombaria do texto de Mancini, o que faz Brinquedo Assassino realmente funcionar há mais de 30 anos é a sua visão cristalina de uma franquia de terror que faz dos oprimidos os seus campeões, e permite que filhos de famílias quebradas (Andy, Nica, Kyle, e por aí vai) encontrem uns nos outros algum tipo de comunidade - mesmo que seja no meio de assassinatos sangrentos e rituais de vodu.
O romance gay que estará no centro de Ckucky não vai ser peixe fora d’água aqui. De fato, ele deve se sentir plenamente em casa.