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Como o Zé do Caixão criou o horror brasileiro

Sem dinheiro e com bastante insistência, José Mojica Marins se tornou ícone e ensinou lições valiosas aos futuros cineastas

19.02.2020, às 19H00.
Atualizada em 19.02.2020, ÀS 21H54

O cinema de horror é repleto de nomes grandiosos, como John Carpenter, Wes Craven e Alfred Hitchcock. Ainda que ampla, a produção de terror no Brasil não é tão bem difundida quanto nos Estados Unidos, mas o país também teve um gênio para chamar de seu: José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que faleceu aos 83 anos de idade. É certo dizer que sem a incansável luta do cineasta ao longo das décadas, o gênero não se firmaria tão bem por aqui, e seu impacto e legado é visível.

Mojica começou sua carreira na década de 1950, mas trabalhando em faroestes e filmes de teor religioso, como A Sina do Aventureiro (1958) e Meu Destino em Tuas Mãos (1963). Naquela época as obras tinham pouco reconhecimento. Fascinado pelas obras de horror estrangeiras e motivado pelo desejo de chocar, o diretor foi vanguardista em importar o gênero ao Brasil em 1964, com À Meia Noite Levarei Sua Alma. Assim nascia o Zé do Caixão.

O personagem de Mojica, inspirado por um pesadelo do realizador, é um sádico coveiro que aterroriza uma pequena cidade em busca da mulher perfeita para lhe parir uma cria. Com chocante violência e crueldade (até para os dias de hoje), o cineasta atingiu seu objetivo de impactar - especialmente pela profanidade. Uma cena, por exemplo, traz o Zé do Caixão em plena Sexta-Feira Santa revoltado pela falta de carne em sua refeição: Do que me importa que seja sexta-feira dos santos ou do demônio? Hoje eu como carne nem que seja de gente, exclama, para o horror de sua caseira, que alerta que encontrará o diabo durante sua procura. Se eu o encontrar, vou convidá-lo para o jantar. Mais tarde, o coveiro se delicia com um pedaço de cordeiro enquanto assiste a procissão, aos risos.

O filme dividiu a crítica da época - muitos viram como algo ousado, enquanto outros receberam como lixo ofensivo. Por conta disso, Mojica também entrou para a lista da censura da ditadura militar, que partiu em uma cruzada contra todos os projetos futuros do cineasta. Ao longo de sua carreira, obras do Zé do Caixão foram cortadas, reeditadas ou sequer lançadas. Isso não impediu que o diretor continuasse insistindo durante anos e anos. Essa briga funcionou, até certo ponto, já que a figura se tornou amplamente popular, passou a protagonizar HQs, séries de TV e também apresentar programas. José Mojica Marins virou a referência máxima do horror nacional.

Por mais que o diretor não tenha sido valorizado financeiramente por isso, essa fama persiste até hoje, até internacionalmente. Na década de 1990 suas obras foram lançadas nos Estados Unidos e Europa. Com o nome de Coffin Joe, Mojica foi consagrado como um mestre do exploitation brasileiro e caiu nas graças de cinéfilos do mundo - alguns até como Roger Corman, magnata do filme-b, e o cult Roman Polanski, diretor de O Bebê de Rosemary. Até recentemente, durante o painel do podcast Transmissão Fantasma na CCXP19, Takashi Shimizu (O Grito) exaltou seu carinho pelo brasileiro.

A história do Zé do Caixão deixou um ensinamento para o cineastas de gênero nacionais: fazer filmes mesmo que não ninguém parece apoiar. Mojica ensinou que o amor pelo terror pode existir ao lado das condições precárias, inspirando inúmeros diretores e quadrinistas a explorarem ideias gigantes com orçamentos minúsculos ou inexistentes. Um bom exemplo disso é Rodrigo Aragão, atual mestre do trash nacional que, por sinal, trabalhou com Mojica na coletânea As Fábulas Negras (2015), último trabalho do diretor em vida.

Dos últimos anos para cá, o cinema do Brasil mostrou força. Seja obras com mais nuance, como As Boas Maneiras e Bacurau, ou então outras mais apelativas, como Morto Não Fala, a presença de José Mojica Marins continua forte no audiovisual nacional. Talvez não a luz do dia, mas sim gargalhando nas sombras.

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