Uma pergunta persegue a adorável metamorfa Nimona (Chloë Grace Moretz) por onde quer que vá: “O que é você?”. A questão seria razão de angústia para qualquer um — afinal, os dilemas existenciais nos assombram. Na animação, porém, se trata de uma interrogação menos filosófica e mais literal, uma sugestão sutil de que faltaria humanidade à personagem. E ninguém poupa Nimona desse desconforto, nem mesmo Ballister (Riz Ahmed), cavaleiro que há anos convive com a desconfiança do reino simplesmente por não vir de berço nobre. Na realidade, é ele quem afirma, mais de uma vez, que “seria mais fácil” se Nimona fosse “só” uma menina.
A protagonista, no entanto, não se dobra às normas da Instituição, organização que rege o reino, nem às expectativas do “chefe”. Sua resposta é sempre a mesma: “Sou Nimona”. Ela sabe que sua identidade basta para dizer tudo o que seu interlocutor precisa saber — até porque, não importa a forma que assuma, sua personalidade segue inconfundível —, assim como tem plena consciência de que sua natureza metamórfica, explícita aos olhos de todos, não é tão difícil de compreender. Ela, na verdade, apenas contradiz noções que há gerações o povo foi condicionado a acreditar. Porque, para eles, o fantástico (ou o meramente diferente) se tornou sinônimo de monstruosidade, ou seja, não desperta entusiasmo, nem curiosidade, mas sim medo.
Essa proposição, somada à jornada de Ballister para provar sua inocência, poderia ser interpretada sob o prisma do conto do “azarão”. Porque, superficialmente, Nimona tem mesmo paralelos com animações como Shrek e Luca, nas quais julgam o caráter dos protagonistas por sua aparência e pelos estereótipos associados a ela. Ambos, assim como Nimona, são tidos como vilões apenas por existirem, mas provam seu heroísmo e, consequentemente, interrompem um ciclo de preconceitos. No entanto, por mais que esta seja uma leitura adequada em alguma medida, ela ignora um subtexto bastante aparente e essencial para compreender o quadrinho de ND Stevenson e a adaptação da Netflix. Nimona é, por essência, uma história queer — aliás, uma bela história queer.
Ao longo da trama, a não-compreensão — quando não deturpação — do caráter de Nimona é apresentada de tal forma que reflete a experiência de quem se identifica na sigla LGBTQIA+, sobretudo as pessoas trans e não-binárias. São diálogos inteiros que, praticamente palavra por palavra, ecoam o preconceito ou o desconhecimento daqueles que resistem a aceitar qualquer um que não se encaixe no padrão binário. Mas, toda vez, a postura determinada da heroína e suas respostas rápidas, irônicas e levemente debochadas deixam claro onde de fato está o constrangimento. Aliás, é justamente esse jeito espirituoso e astuto que torna Nimona uma personagem tão irresistível e única. Ela é uma presença enérgica e cativante, que colore o universo já bastante divertido criado por Stevenson.
A habilidade da protagonista de transformação opera nessa mesma chave, como uma divertida representação dessa fluidez de gênero, lúdica na medida que ilustra como a quebra da norma pode ser libertadora e poderosa — norma esta representada, em partes, pela muralha que confina a vida de todo o reino, não apenas a dela. Mas o acolhimento dos espectadores está em todo canto, dado o cuidado para escolher um elenco de dubladores com forte presença LGBTQIA+, ou ainda a representação doce do romance entre Ballister e Ambrosius (Eugene Lee Yang), que nunca é associado à dita “vilania” de um deles.
(Este último detalhe é particularmente importante, considerando que há toda uma tradição na animação de criar antagonistas com traços que remetem à comunidade LGBTQIA+ — o hall de grandes vilões da Disney, por exemplo, conta com figuras como Úrsula, Jafar, Hades e Scar, todos com códigos que relacionam drag queens e/ou a homossexualidade com maldade. Mesmo em Luca, que em teoria faz um retrato positivo — e não à toa foi apelidado de Calamari by your Name —, é tão tímido e omisso que quase pede desculpas por ir “longe demais”. Nesse sentido, a jornada de Nimona e Ballister é também subversiva: os dois não dão margem para dúvidas de que são os grandes heróis da história, e o fazem com orgulho.)
Esses acenos não são nada banais: Stevenson é uma pessoa trans, cujo processo de autodescoberta se desenrolou conforme desenvolvia a HQ. Até por isso é perceptível a diferença no retrato de Nimona do quadrinho original para o filme, considerando o momento em que o autor estava na própria jornada de aceitação — se antes tinha dúvidas, como a primeira versão da Nimona, agora também já não resiste mais à sua identidade. No entanto, vale ressaltar que esta não é a única mudança. Na Netflix, Nimona remodelou temas e a própria trama de forma bastante objetiva para se acomodar em uma hora e meia de duração. E, como não poderia ser diferente, com o ajuste vieram algumas reduções e até simplificações em termos de história, mas o longa manteve intacta a magia da HQ. O estilo da animação, que remete ao 2D dos clássicos, conserva a ingenuidade do traço de Stevenson. Da mesma forma, a potência do rosa, quente e convidativa, dá ênfase à espontaneidade da protagonista que, no fundo, personifica todo o encanto do filme.
Nimona é tão bonito, tematica e esteticamente, que é difícil não se chocar novamente ao lembrar que a Disney preferiu cancelar o filme a lançá-lo. Mas há de se reconhecer que existe também uma deliciosa ironia nisso tudo. Preferindo seguir o exemplo da Diretora (Frances Conroy), o estúdio que uniformizou estilos e narrativas hoje patina diante da inventividade da concorrência. Já Nimona, insistente e travessa como é, não só foi capaz de superar a adversidade, como triunfou, mais potente e relevante do que nunca.