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O Segredo de Brokeback Mountain | Crítica

O Segredo de Brokeback Mountain

02.02.2006, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H19

O Segredo de Brokeback Mountain
Brokeback Mountain
EUA, 2005
Drama - 134 min

Direção: Ang Lee
Roteiro: Larry McMurtry e Diana Ossana, baseado em estória de Annie Proulx

Elenco: Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, Michelle Williams, Anne Hathaway, Randy Quaid, Linda Cardellini, Anna Faris, Scott Michael Campbell, Kate Mara

Globo de Ouro de melhor drama, oito indicações ao Oscar, apologia da homossexualidade, provocação contra conservadores... O barulho ao redor de O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005) já ficou muito maior do que o filme. Isso pede um texto desmistificador - a começar pela derrubada do rótulo, que o próprio diretor taiwanês Ang Lee refuta, de western gay.

Não é um western

Não são vaqueiros que fazem um faroeste, mas o momento histórico (conquista do Oeste, Guerra da Secessão, corrida do ouro na Califórnia), político (estabelecimento de Estados no Centro-Oeste, delimitações de fronteiras com o México) e social (colonização, cultura indígena e latina versus cultura anglo-americana) dos Estados Unidos, que vai do final do século 19 ao início do 20. Brokeback Mountain, nesse ponto, é muito mais parecido com Tempestade de gelo (1997), o primeiro filme estadunidense de Lee, que faz a ácida crônica dos anos 1970 no país.

As duas décadas que marcam a relação de Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal) vão dos anos 60 aos 70. Figurinos, costumes, cabelos, cenários; tudo faz lembrar a cada minuto que aquele é o tempo do american way, do empreendedorismo, do self-made man - e o retrato é igualmente mordaz, um pouco mais amargo talvez, ao de Tempestade de gelo. Não há saloons, diligências ou cidades desertas. Há, sim, empregos em supermercados, botecos escuros de bilhar, salões de festa com gente desinteressante ao som do country, a trilha sonora sulista oficial. É dessa realidade, para começo de conversa, que Ennis e Jack fogem simbolicamente sempre que marcam de se encontrar na isolada montanha Brokeback.

Foi lá que eles se conheceram, contratados para arrebanhar e vigiar as ovelhas de um grande fazendeiro. No primeiro contato, os meses, o frio e a solidão logo fortaleceram a amizade dos dois homens que, a princípio, têm em comum a condição de outsiders. Ennis perdeu os pais, foi criado pelos irmãos, não é exatamente um cowboy de sucesso. Jack tenta a vida como montador de bois, profissão desdenhada por muitos, e seu futuro nas arenas não é dos melhores. Que a atração sexual desponte sob a tenda, numa noite gelada na montanha, é menos uma sacanagem pós-bebedeira e mais um reflexo da urgência que ambos têm por cuidado, atenção.

Não é (tão) gay

A humanidade dos personagens é o que nos leva à segunda desmistificação. Brokeback Mountain não é um western e também não é tão gay - pelo menos segundo a imagem que a cultura de massa faz do que é ser gay. Não há botas rosas, gente desmunhecando, dando piti ou falando fino. Não há corpos malhados nus enxugando o suor da testa em câmera lenta. Não vá ao filme (ou não evite o filme) se você imagina um Os Assumidos, um Gaiola das loucas ou uma tirinha de Rock & Hudson. Não tem nada a ver.

Muito pelo contrário, Ennis e Jack, mesmo apaixonados, não deixam de ser homens de seu tempo - machistas, egoístas, infantilizados. Moram longe, um no Wyoming e outro no Texas, mas reproduzem os mesmos preconceitos de uma geração inteira, como o desprezo reservado às mulheres (especialmente às esposas que dão à luz meninas, e não garotos, futuros herdeiros, repare nisso). Cena emblemática: a mulher de Ennis, Alma (Michelle Williams, a Jen de Dawsons Creek, em desempenho acima do resto do elenco), não quer transar porque falta proteção; o marido reclama, mesmo que ele não pare em casa nem ajude a criar a prole, se você não quer mais filhos meus, que nos separemos.

O que é então?

Rótulos derrubados, resiste de pé um ponto, citado lá em cima, na primeira frase. De fato, Brokeback Mountain é um filme de provocação - e não apenas contra conservadores, mas contra padrões sociais. Não vamos entrar na referência religiosa do pastor e do rebanho de ovelhas; seria mexer com vespas mais raivosas. O que o filme não apenas sugere como adota, daí sim, é a visão da natureza como sinônimo de amor puro, existência preenchida. É quase um elogio da regressão, do primitivismo. E, como tal, uma negação da convivência em sociedade.

Quando Ennis e Jack não estão na montanha, suas rotinas são miseráveis: cuidar da família, comparecer ao emprego, fazer média com amigos. Tudo bem, um não se completa sem o outro, todo o resto representa um zero, um nada. Mas o registro anedótico que Ang Lee faz desse nada dá a entender que não há futuro digno ali, seja para gays, seja para heteros.

É um tipo de ironia às vezes suave, às vezes grossa: o jeito como a câmera fecha o close no penteado cheio de permanente de Lureen (Anne Hathaway) quando ela atende o telefone, o constrangimento de Alma (mais um) quando ela fala da caixa de pesca, a cara de eterno gerente de supermercado de Monroe (Scott Michael Campbell) quando ele acha que virou o dono da casa... Brokeback Mountain é um drama, daqueles em que as pessoas saem inchadas de choro, mas se alguém ao seu lado no cinema começar a rir timidamente, não estranhe. É a atitude desdenhosa que o diretor Lee toma diante de certos personagens e de certas situações que legitima esse comportamento.

Cria-se um paradoxo, portanto. Porque no fundo a aspiração de Ennis e Jack é constituir uma união civil estável, e o que o filme faz é justamente criticar o caráter estanque da rotina - pagar contas, prestar contas, buscar emprego, envelhecer, etc. A pergunta é impertinente, mas não custa ser feita: os cowboys seriam felizes se pudessem se casar?

O filme não diz, mas dá a entender que não - e isso até o último fotograma. Na enigmática tomada final, a câmera pega simultaneamente a janela de um trailer e um cartão-postal da montanha pregado numa porta. A analogia é sutil. Na fotografia, mesmo pequena, a montanha Brokeback parece mais grandiosa, mais plácida, mais atraente, do que o mundo de fora da janela, enquadrado, óbvio, o mundo da mesmice. Talvez por isso o irregular filme de Ang Lee esteja conquistando corações (e prêmios): ele fala de um amor idealizado, não de um amor de realidade.

Nota do Crítico
Ótimo