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Ponto Final - Match Point | Crítica

Ponto Final - Match Point

16.02.2006, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H19

Ponto Final - Match Point
Match Point - Inglaterra /
EUA / Luxemburgo, 2005
Drama/Suspense - 124min

Direção e roteiro: Woody Allen

Elenco: Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson,
Emily Mortimer, Alexander Armstrong, Matthew Goode, Brian Cox, Penelope Wilton, Simon Kunz, Geoffrey Streatfield, John Fortune, Rupert Perry-Jones, Miranda Raison, Rose Keegan

Ainda que já tenha rodado filmes na Romênia (cenas de estúdio de Celebridades), na Hungria (e na França, em A última noite de Boris Grushenko), na Itália (a ópera de Hanna e suas irmãs e o coro grego de Poderosa Afrodite), Woody Allen é sinônimo de Nova York.

A metrópole - mais especificamente a ilha de Manhattan, o Central Park e o Brooklyn, onde ele nasceu - é personagem crucial de filmes como Manhattan (1979), Contos de Nova York (1989), A era do rádio (1987), Crimes e pecados (1989), Trapaceiros (2000)... A lista vai longe. A imagem do judeu prolixo e problemático dos tipos criados por Allen não existiria sem as neuroses de NY. Nenhuma outra cidade ganhou vida nos filmes dele - até agora.

O cineasta e ator de setenta anos mantém uma média invejável de um filme por ano, mas suas últimas comédias nova-iorquinas não foram bem nas bilheterias - notadamente a recente leva distribuída pela DreamWorks, O escorpião de jade (2001), Dirigindo no escuro (2002) e Igual a tudo na vida (2003). Depois de lançar Melinda e Melinda (2004) pela Fox, Allen retorna à DreamWorks. Mas dá uma sacudida nas coisas. Decide não apenas trocar de gênero como mudar de ares. O thriller trágico-erótico Ponto final - Match point (2005) se ambienta na capital inglesa - uma Londres onde colidem a tentação da aristocracia e a tentação da vida mundana.

O irlandês Jonathan Rhys-Meyers (Feira das vaidades) interpreta Chris Wilton, ex-tenista que acredita em golpes de sorte. Recém-chegado na cidade, vira instrutor de Tom Hewett (Matthew Goode) e, por obra do acaso, se aproxima da irmã dele, Chloe (Emily Mortimer). Os modos educados e a estirpe esportiva gabaritam Chris a frequentar a casa de campo dos opulentos Hewett. Ele não demora a ser visto como pretendente perfeito para Chloe. Casam-se rápido. Acontece que no caminho há uma moça dos Estados Unidos.

Nola (Scarlett Johansson) é a namorada da vez do pacato Tom, instável aspirante a atriz (para desespero da potencial sogra) hospedada em Londres para fugir da vidinha interiorana na América. Enquanto a mirrada Chloe sintetiza a fleuma inglesa, Nola é o lascivo Mundo Novo. A boca carnuda, o busto farto, o jeito de diaba incontida... Claro que ela arrebata corpo e mente de Chris Wilton - que, afinal, como todo irlandês, sabe o que é ter sangue quente nas veias.

As duas metades de Allen

Tudo isso não vai acabar bem, como Allen já sinaliza no começo do filme, quando mostra Chris folheando Crime e castigo, de Dostoievski. A referência ao clássico russo permeia Match point - desde o dilema moral, de modo geral, até citações particulares, como o homicídio duplo e o perrengue na delegacia, diante do esperto detetive. Não é exatamente produtivo, porém, alimentar a comparação entre filme e livro. A começar pela atuação descalibrada de Rhys-Meyers, engolido pelas ótimas Emily e Scarlett, soterrado ainda mais pela pesada herança literária do anti-herói Rodion Raskólnikov.

Mais oportuno é enxergar Match point (e essa frase pode parecer banal) exclusivamente como uma criação de Woody Allen. Não é essencial conhecer o retrospecto "geo-emotivo" do cineasta para usufruir do filme, mas ter em mente que o olhar de Allen aqui é um olhar de expatriado enriquece as interpretações possíveis.

Primeiro, atente para a maneira como Allen filma a cidade e se deixa levar por ela. Seus personagens passeiam pela Tate Modern, estabelecem atração pelas obras, em seguida a câmera se prende ao encanto fálico do The Gherkin (aquele edifício modernoso em forma de espiga). Tudo tem a ver, nesse olhar do americano arrebatado, com paixão à primeira vista. Até o bucolismo de Buckinghamshire, onde a aristocracia se materializa no tiro-ao-prato ou no chá das cinco no jardim, assiste à impulsividade - aliás, que baita impulsividade aquela transa na chuva.

O que se estabelece, vale repetir, é a rixa entre a polidez e o despudor - melhor dizendo, a apatia de quem é da casa e a libido de quem está chegando agora. Dentro da tela, a colisão dos tipos americano e britânico reflete o que ocorre do lado de fora com o diretor. É como se Chris e Nola fossem metades da psique de Allen. Sobre um ombro, a entidade divina que é Nola, resgatando (e tentando adaptar ao novo terreno) o que há de mais passional na relação do indivíduo com sua terra natal. Sobre o outro ombro, o diabo londrino, exercendo sobre Allen o mesmo poder que a aristocracia exerce sobre Chris, o poder de enquadrar.

Allen tem medo de ser enquadrado? Guarda ele algum espírito selvagem da América, o espírito inquieto do artista (Nola não é atriz por acaso)? Trair Nova York é um adultério digno de culpa? O rumo que o diretor toma agora para sua carreira - Londres volta a ser locação, na ainda inédita comédia Scoop, novamente com Scarlett - diz muito das escolhas de que o ex-tenista Chris toma dentro do filme. Nem tudo é regido pela sorte, presume-se depois, a ficção tem mais de premeditada do que imaginamos.

Nota do Crítico
Ótimo