A minha grande pergunta para os quadrinhos em 2022 – e acho que não só minha – era: o mercado ia desacelerar depois da pandemia?
Em 2020 e 2021, o mercado de distrações engordou porque as pessoas precisavam matar o tédio de ficar em casa. As vendas de quadrinho, uma dessas distrações, cresceram muito, mas muito em vários países. A pandemia não acabou de vez, mas começamos a ver a rua com mais frequência e a tendência era de que aquele consumo de distrações iria cair.
Qual vai ser o papo dos quadrinhos em 2023? Eu tenho um medo sério do preço do papel e do quanto isso vai impactar o mercado nesse ano. Não é um problema só brasileiro, mas que é agravado pela crise econômica brasileira.
O papo perene sobre o preço do gibi continuou vivo, com bons motivos, em 2022. Se sua referência de gibi barato for Mônica, o gibi da Mônica chegou a R$ 9,90 no ano passado. Nenhum dos noventa e quatro gibis do Batman custou menos de R$ 14,90. A Morte e o Retorno do Superman Omnibus bateu o recorde histórico de preço de capa a R$ 599.
“O gibi indie de R$ 15 agora está por R$ 25”, como ouvi na CCXP. Graphic novels que custam entre R$ 100 e 200 deixaram de assustar e viraram parte da paisagem. Também virou normal você consultar o saldo e decidir que não vai comprar a graphic novel de R$ 100 e bolinha. É possível que o preço dos gibis faça você desistir de mais compras em 2023.
Falta alguma figura grande do mercado nacional investir de verdade no quadrinho digital, de olho no tão sonhado “Netflix dos quadrinhos” – algum equilíbrio em que catálogo, preço e comodidade façam o leitor ver vantagem em pagar. E não só consumir de graça, como é o padrão brasileiro para digital.
As notícias nessa área que vêm de fora apontam os modelos: a Izneo, líder do quadrinho digital na Europa, e a Comixology, líder do quadrinho digital nos EUA, estão reduzindo as operações. Por outro lado, tem pesquisa dizendo que o mercado de webtoons vai passar de US$ 5 bilhões a US$ 60 bilhões até o fim da década.
Quer saber menos de quanto foi e mais do quê foi 2022? Eu também.
2022 foi o ano em que Little Nemo finalmente teve uma edição digna no Brasil, depois de cento e tantos anos. Foi praticamente o mesmo caso com Krazy Kat. Outros clássicos indiscutíveis, como Alack Sinner, Ônibus e Um Cadáver no Rio Imjin também resolveram dar as caras no Brasil em 2022.
Cidade de Vidro ganhou uma nova edição para ficar em catálogo. Hitman e Starman voltaram, dessa vez para ir até o fim. Nausicaä, espera-se, também vai até o fim. Palavras, Magias e Serpentes e WildC.A.T.s por Alan Moore cavoucaram o que ainda era inédito ou quase inédito do barbudão por aqui.
Eleanor Davis, Andi Watson, Aimée de Jongh, Noah Van Sciver, Rachel Smythe, Pedro Mancini, Simon Gärdenfors, Julie Doucet, Joe Ollmann, Trung Le Nguyen, Jim Woodring, Darryl Cunningham, Wilfrid Lupano & Grégory Panaccione, Davide Reviati e Chantal Montellier, entre outros autores muito discutidos lá fora, nunca (ou mal) tinham sido publicados no Brasil até 2022.
Seth, Ralf König, Cyril Pedrosa, Lucas Varela, Lorenzo Mattoti, Powerpaola e Lewis Trondheim, nomes que aparecem muito no exterior, mas no Brasil passam tempos sumidos, tiveram lançamentos brasileiros em 2022.
O que é O Mundo Sem Fim? É uma longa conversa em quadrinhos, informativa e engraçada, entre Jancovici, um especialista em energias renováveis, e Blain, o quadrinista de Gus, Isaac o Pirata e outras maravilhas.
Jancovici explica que nossa dependência dos combustíveis fósseis vai ter que acabar e que opções como solar e eólica não dão conta da demanda. A solução, para ele, é aceitarmos a energia nuclear – a qual, de novo segundo Jancovici, é menos perigosa do que pintam.
Mundo Sem Fim também foi tema de uma das notícias mais curiosas do ano nos quadrinhos. No final de 2022, algumas livrarias da França receberam “erratas” para colocar dentro de cada exemplar, com uma lista de correções a argumentos que o álbum faz sobre energia nuclear.
A Dargaud teve que avisar que a errata não é oficial e que é obra de ativistas contra a energia nuclear e, portanto, opostos ao livro. A editora diz que vai abrir um processo contra as pessoas que se passaram por suas representantes.
A errata falsa reflete o que muitas críticas ao livro na França já disseram: apesar de Jancovici, na própria HQ, debater e refutar várias objeções à energia nuclear, não há consenso quanto ao perigo que ela representa. O que a humanidade precisa fazer é descobrir um jeito de consumir menos energia.
VIRANDO PÁGINAS
Jason Pearson faleceu há um mês, em 19 de dezembro de 2022, mas sua morte só foi anunciada pela família esta semana. Pearson fez parte de uma onda de quadrinistas dos EUA influenciados por mangá que surgiu nos anos 1990, marcada na sua sua estreia com Legião dos Super-Heróis e na série Body Bags: Os Caçacorpos. Depois, ele teve participações esporádicas em diversos quadrinhos de Marvel, Dark Horse e Image. Era conhecido por opiniões polêmicas e colegas como do Gaijin Studios disseram que era uma figura complicada. Tinha 52 anos.
Pearson se junta a uma lista de autores que, infelizmente, fizeram seus últimos quadrinhos em 2022. O ano que levou, em questão de poucas semanas, a trinca Neal Adams, George Pérez e Tim Sale, também levou Jean-Jacques Sempé, Kim Jung Gi, Kevin O'Neill, Carlos Pacheco, Aline Kominsky-Crumb, Calpurnio, Jean-Claude Mézières, Miguel Gallardo, Justin Green, Alan Grant, Raymond Briggs, Tom Palmer, Lily Renée, Diane Noomin, Ron Goulart, Brian Augustyn, Ian Kennedy, Tom Veitch, Garry Leach, Ron Zimmermann, José Ruy, Jang Seong-Rak, Kazuki Takahashi e Dijjo Lima. Que Desenhem em Paz, como dizia Jason Pearson.
Joe Staton completou 75 anos ontem, dia 19. Desenhista conhecido de Lanterna Verde, Sociedade da Justiça e outros títulos da DC, Staton é um dos criadores da Caçadora e dos Ômega Men. Milênio, a saga que desenhou na DC, será relançada no Brasil em março. Ele aposentou-se no final de 2021 depois de mais de dez anos desenhando a tira de Dick Tracy, que lhe rendeu três prêmios Harvey junto ao roteirista Mike Curtis.
Anti-Herói Americano, ou American Splendor, estreou em Sundance em 20 de janeiro de 2003, há exatos 20 anos. É a dramatização da vida de Harvey Pekar (1939-2010), que passou mais de trinta anos contando sua vida em HQ. Com roteiro e direção de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, Paul Giamatti no papel principal e Hope Davis como a esposa Joyce Brabner, provavelmente é o melhor filme que já se fez sobre um quadrinista.
UMA PÁGINA
De Blood of the Virgin, de Sammy Harkham. Em produção há mais de dez anos, a graphic novel do mesmo autor de Pobre Marinheiro é a história de Seymour, um montador que trabalha no cinema barato da Hollywood dos anos 1970 e que quer fazer seus próprios filmes. Vai sair quase ao mesmo tempo nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha e deve ser o álbum mais falado desse início de 2023.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato. Também é autor dos livros Balões de Pensamento – textos para pensar quadrinhos e Balões de Pensamento 2 – ideias que vêm dos quadrinhos.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira (ou quase toda), virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
#102 – A inteligência artificial vai substituir o desenhista humano?
#101 – Os essenciais de Angoulême
#100 – O (meu) cânone dos quadrinhos
#99 – A melhor CCXP de uns, a pior CCXP de outros
#98 – Os prêmios e os quadrinhos que vão valer em 2047
#97 – Art Spiegelman, notável
#96 – O mundo quer HQ brasileira
#95 – A semana do Brasil e do quadrinho brasileiro
#94 – Todo fim de ano um engarrafatarse
#93 – Um almoço, o jornalismo-esgoto e Kim Jung-Gi
#92 – A semana mais bagunçada da nossa história
#91 – Ricardo Leite em busca do tempo
#90 – Acting Class, a graphic novel queridinha do ano
#89 – Não gostei de Sandman, quero segunda temporada
#88 – O novo selo Poseidon e o Comicsgate
#87 – O mundo pós-FIQ: você tinha que estar lá
#86 – Quinze lançamentos no FIQ 2022
#85 – O Eisner 2022, histórico para o Brasil
#84 – Quem vem primeiro: o roteirista ou o desenhista?
#83 – Qual brasileiro vai ao Eisner?
#82 – Dois quadrinhos franceses sobre a música brasileira
#81 – Pronomes neutros e o que se aprende com os quadrinhos
#80 – Retomando aquele assunto
#79 – O quadrinista brasileiro mais vendido dos EUA
#78 – Narrativistas e grafistas
#77 – George Pérez, passionate
#76 – A menina-robô que não era robô nem menina
#75 – Moore vs. Morrison nos livros de verdade
#74 – Os autores-problema e suas adaptações problemáticas
#73 – Toda editora terá seu Zidrou
#72 – A JBC é uma ponte
#71 – Da Cidade Submersa para outras cidades
#70 – A Comix 2000 embaixo do monitor
#69 – Três mulheres, uma Angoulême e a década feminina
#68 – Quem foi Miguel Gallardo?
#67 – Gidalti Jr. sobre os ombros de gigantes
#66 – Mais um ano lendo gibi
#65 – A notícia do ano é
#64 – Quando você paga pelo que pode ler de graça?
#63 – Como se lê quadrinhos da Marvel?
#62 – Temporada dos prêmios
#61 – O futuro da sua coleção é uma gibiteca
#60 – Vai faltar papel pro gibi?
#59 - A editora que vai publicar Apesar de Tudo, apesar de tudo
#58 - Os quadrinhos da Brasa e para que serve um editor
#57 - Você vs. a Marvel
#56 - Notícias aos baldes
#55 – Marvel e DC cringeando
#54 – Nunca tivemos tanto quadrinho no Brasil? Tivemos mais.
#53 - Flavio Colin e os quadrinhos como sacerdócio
#52 - O direct market da Hyperion
#51 - Quadrinhos que falam oxe
#50 - Quadrinho não é cultura?
#49 - San Diego é hoje
#48 - Robson Rocha, um condado, risografia e Cão Raivoso
#47 - A revolução dos quadrinhos em 1990
#46 - Um clássico POC
#45 - Eisner não é Oscar
#44 - A fazendinha Guará
#43 - Kentaro Miura, o karôshi e a privacidade
#42 - A maratona de Alison Bechdel, Laerte esgotada, crocodilos
#41 - Os quadrinhos são fazendinhas
#40 - Webtoons, os quadrinhos mais lidos do mundo
#39 - Como escolher o que comprar
#38 - Popeye, brasileiros na França e Soldado Invernal
#37 - Desculpe, vou falar de NFTs
#36 - Que as lojas de quadrinhos não fiquem na saudade
#35 - Por que a Marvel sacudiu o mercado ontem
#34 - Um quadrinista brasileiro e um golpe internacional
#33 - WandaVision foi puro suco de John Byrne
#32 - Biografia de Stan Lee tem publicação garantida no Brasil
#31 - Sem filme, McFarlane aposta no Spawnverso
#30 - HQ dá solução sobrenatural para meninos de rua
#29 - O prêmio de HQ mais importante do mundo
#28 - Brasileiros em 2021 e preguiça na Marvel
#27 - Brasileiros pelo mundo e brasileiros pelo Brasil
#26 - Brasileiros em 2021 e a Marvel no Capitólio
#25 - Mais brasileiros em 2021
#24 - Os brasileiros em 2021
#23 - O melhor de 2020
#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo
#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries
#20 - Seleções do Artists’ Valley
#19 - Mafalda e o feminismo
#18 - O Jabuti de HQ conta a história dos quadrinhos
#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo
#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?
#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil
#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee
#13 - Cuidado com o Omnibus
#12 - Crise criativa ou crise no bolo?
#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix
#10 - Mais um fim para o comic book
#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca
#8 - Como os franceses leem gibi
#7 - Violência policial nas HQs
#6 - Kirby, McFarlane e as biografias que tem pra hoje
#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês
#4 - Cheiro de gibi velho e a falsa morte da DC Comics
#3 - Saquinho e álcool gel: como manter as HQs em dia nos tempos do corona
#2 - Café com gostinho brasileiro e a história dos gibis que dá gosto de ler
#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020
#0 - Warren Ellis cancelado, X-Men descomplicado e a versão definitiva de Stan Lee
(c) Érico Assis