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Perto de Desejo e Obsessão (Trouble everyday, 2001), 9 Canções é fichinha. Enquanto o longa de Michael Winterbottom exibe uma noção vaga e etérea de um relacionamento movido a sexo, Claire Denis opta pelo obscurantismo ao mostrar a consistência de um amor carnal pesado, doentio. Se o assunto gera inúmeras possibilidades e leituras, evidente que o que difere uma diagramação de outra é o percurso a se seguir dentro do campo dessa sexologia filmada. E, nesse caso, Denis não faz concessões no seu road body lento e indigesto de conotações bem cáusticas.
Shane (Vincent Gallo) e June Brown (Tricia Vessey) são dois norte-americanos recém-casados que estão em viagem a Paris. Ele é um homem atormentado, tomado por um incontrolável apetite sexual e, por isso, está procurando desesperadamente um velho conhecido: Léo Semeneau (Alex Descas), um médico francês com quem trabalhou em perigosos experimentos sobre a libido humana. Dr. Semeneau persegue Core (Béatrice Dalle), sua insaciável esposa, que fugiu do quarto onde era mantida presa. Mas é Shane quem a encontra, agachada sobre um rapaz ensangüentado e cheio de mordidas.
Apesar de se confundir com alguns congêneres por causa do tabu de sua temática, Desejo e Obsessão é quase o oposto dos frutos de Larry Clark e Catherine Breillat. Estes últimos fazem filmes meramente pra chocar, e colocam o sexo como um fim em si mesmo. Há uma ostentação erógena metida a intelectual que se move por conta própria, como se a "trama" fosse implementada às cenas de nudez sem vergonha. As propostas destes strip teases pseudo-existencialistas são claras, e qualquer dilema ou situação de conflito está centrado dentro de um jogo cênico cartesiano. Nesse outro caso os meandros são mais dúbios e as motivações dos protagonistas muito mais dialéticas e perturbadas. Pela própria construção da narrativa o entendimento fica mais tortuoso, descartando possibilidades simplórias de análise que os anteriores em comparação permitem.
A complexidade de Desejo e Obsessão já começa por sua linguagem cinematográfica. Uma cena não prepara o espectador nem dá indício algum da cena posterior, tampouco serve de resposta à cena anterior. O desencadeamento dos fatos é desconexo. Não se trata de construção em flashback; é ruptura da ruptura mesmo. O filme é todo fragmentado, inclusive na mescla de gêneros e estilos. Ora permeia por um certo erotismo, ora faz um olhar mais compenetrado no rosto dos personagens e, em alguns instantes, parece até filme de terror. Apesar de constantemente misturar períodos tensos e períodos lassos, o filme não dá brechas a descansos e descarta qualquer possibilidade de sossego.
Embora seja um filme órfão, que não dá pra ser incluído em nenhum tipo de escola cinematográfica, Desejo e Obsessão é antagônico na sua diferenciação de certos priminhos. Se não é punheteiro adolescente igual a Ken Park, tampouco chega a resvalar na pornografia-cabeça cool de 9 Canções e 69 posições. O exibicionismo de butique de Winterbottom procura colocar a câmera em lugares inatingíveis, rompendo limites entre aquilo que está em cena e o observador. Já Denis, nesse sentido, é bem respeitosa. Há sim um voyeurismo, mas numa latitude paradoxalmente próxima e distante do objeto. Desejo e Obsessão é, em princípio, um filme anatômico. Suas lentes não se furtam de observar as curvaturas dos corpos e suas reentrâncias. A vagarosidade da câmera, ritmo inversamente oposto ao frenesi psicológico dos personagens, causa ao espectador uma sensação miscigenada de sadismo e conivência. O percurso epidérmico serve de metáfora para um questionamento maior em torno das angústias dos protagonistas. Embora se traduza numa estética completamente diferente, nesse sentido o filme dialoga com a simbologia de alguns filmes iranianos. É o caminho das pedras que dá a forma para o conteúdo que o torna integrante do árido movie. Desejo e Obsessão é um filme citológico. Tropeça nas células corpóreas e cai nas suas cavidades, como se esse movimento de vai-e-vem é que fosse o mecanismo propulsor que dá ritmo à história. Embora se sustente no campo material e orgânico, há imagens construídas meramente abstratas. Mais sádica ainda é a intenção da diretora, que omite a construção arquitetônica dos alicerces ósseos desse pictograma, entretanto, estampa na fuça do espectador a destruição patológica da humanidade através da dissecação sanguinolenta dessas mitocôndrias visuais. De desejo há muito pouco. O filme é todo calcado na consciência da culpa. É como se Eros e Thanatos estivessem um de frente pro outro, colocando na tela o conflito dilemático entre a libido e a tortura. Embora se mantenha num ritmo pouco espetaculoso, o filme não deixa de exibir em tom alegórico esse prazer lúgubre. Aqui, o público tem uma noção bastante concreta das acepções e conotações que o verbo "comer" pode acarretar. É no ato sexual que aparece a vontade antropofágica dos personagens. É como se a câmera estivesse preparando a carne dos corpos, mas quem se sente seduzido não é o público. É o próprio filme o protagonista do momento de abate. Se Denis não fez o filme apenas para agredir os olhos, por outro lado seu fetichismo auto-destrutivo surge como um novo elemento de visão de mundo irônica e pessimista.
Érico Fuks é editor do site www.cinequanon.art.br
Ano: 2001
País: França
Classificação: 18 anos
Duração: 100 min
Direção: Claire Denis
Roteiro: Claire Denis, Jean-Pol Fargeau
Elenco: Vincent Gallo, Béatrice Dalle, Alex Descas, Nicolas Duvauchelle, Florence Loiret Caille