Red: Crescer é Uma Fera

Créditos da imagem: Red: Crescer é Uma Fera/Pixar/Reprodução

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Crítica

Ousado na fofura, Red entende como poucos a complexa relação de mãe e filha

Animação revisita temas de Bao da perspectiva fervilhante de uma pré-adolescente

Omelete
6 min de leitura
11.03.2022, às 18H31.
Atualizada em 16.03.2022, ÀS 15H45

Quando certa manhã Meilin (dublada, no original, por Rosalie Chiang) acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada num panda-vermelho monstruoso. Eu sei, a combinação de palavras soa contraditória. Talvez adjetivos melhores e mais intuitivos para acompanhar o termo “panda-vermelho” fossem “adorável” ou “fofo”, até porque há bichos piores nos quais se transformar — Gregor Samsa que o diga. Mas, para uma pré-adolescente de 13 anos, como é o caso da protagonista de Red: Crescer É Uma Fera, “monstruoso” não é exagero. Na realidade, é uma escolha bastante precisa para descrever o choque de se ver gigante e peludo, sem nenhuma explicação lógica aparente. Perceber a própria fofura fica em segundo plano. Tudo o que se consegue enxergar é o quão “desastrado”, “esquisito” e “fedorento” ficou.

Imediatamente, a transformação de Meilin se anuncia como uma metáfora visual da puberdade: as mudanças físicas difíceis de entender e encarar no espelho, as flutuações de humor e a insegurança são, afinal de contas, clássicos dessa fase da vida. No entanto, ainda que o fator hormonal da pré-adolescência desempenhe um papel estrutural na trama, esta é apenas a ponta do iceberg da história dirigida por Domee Shi. Em Red, a diretora expande o tema do seu curta vencedor do Oscar Bao e explora a complexa relação entre mães e filhos agora a partir da perspectiva da criança. Ou melhor dizendo, desta “oficialmente adulta”, como a própria Meilin se apresenta na animação.

Sempre acompanhada do seu bichinho virtual, a protagonista desfila pelas ruas de Toronto com muita confiança. Ela adora estudar e não tem vergonha nenhuma disso. Pelo contrário: seus colegas não aguentam mais seu orgulho descarado a cada nova nota máxima. Mesmo as piadinhas e os comentários maldosos do chato do Tyler (Tristan Allerick Chen) não a incomodam tanto, porque ela tem as amigas mais fiéis que alguém poderia sonhar. Seja para dançar as músicas da boy band do momento, o 4-Town, seja para ajudá-la a enfrentar as chatices da escola, elas estão sempre lá. Sua grande questão, porém, está em casa. Ela tem tanto medo de decepcionar sua mãe Ming (Sandra Oh) e não atingir suas expectativas que ela sequer compartilha seu amor pelo 4-Town com receio do que ela vai achar. Meilin vive uma espécie de vida dupla: expansiva e cheia de si lá fora, e contida do lado de dentro.

Embora seja instintivo comparar Red com Luca e Valente, duas outras produções da Pixar que abordam, à sua maneira, o deixar o ninho para trás, o monólogo de abertura logo estabelece Meilin como uma heroína à parte. Seu dilema não nasce do embate direto com a mãe, como é o caso de Merida e seu espírito contestador, nem de um amigo inusitado com um convite para uma aventura em uma terra inexplorada. Na realidade, a pré-adolescente vive uma batalha interna que, quer esteja disposta a aceitá-la ou não, não pode ser mais contida. Sua explosão em forma de panda-vermelho, no fundo, é a materialização deste ponto de virada: Meilin precisa se descobrir fora do conforto do colo da mãe, e isso significa também entrar em contato com lados até então desconhecidos de si mesma. Eles podem não ser tão bonitos, cheirosos e ajeitados quanto sua versão cultivada em conjunto com Ming, é verdade. Mas eles podem introduzi-la também a uma magia libertadora, capaz de fazê-la transbordar daquele recipiente hermético em que se colocou.

Domee Shi e as também roteiristas Julia Cho e Sarah Streicher são muito sagazes ao repetir o cuidado que houve em Bao, e não tratar a mãe de Meilin como uma antagonista. Como a matriarca do curta, há uma compreensão generosa de que a postura de Ming não vem de um desejo meramente autoritário, mas de um medo — e, detalhe importante, compartilhado com a filha — de perder a parceria que elas construíram até ali. Trata-se, portanto, de uma doce e complicada relação, calcada em uma dualidade realista e facilmente relacionável: ao mesmo tempo que existe um conflito silencioso e inevitável, existe também um companheirismo simbiótico, presente sobretudo em momentos cotidianos (mas nada banais), como fazer pãezinhos enquanto comentam a novela.

Isso, claro, não torna a cisão menos dolorosa e dramática. Na verdade, talvez até a potencialize, principalmente considerando que a história é narrada da perspectiva de uma personagem no auge dos seus 13 anos. Nesse sentido, a Pixar se permite, inclusive, mais ousadia estética, um movimento inédito para o estúdio — em comparação, Luca e Soul apenas flertaram com essa possibilidade —, mas já visto nas animações dos seus concorrentes, como A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas e Maya e os 3 Guerreiros. Isso porque Red sai do “padrão Disney” e traz mais agilidade e elementos do animes, desde os olhos expressivos que se agigantam e uma transformação à la Sailor Moon até um kaiju para dar dimensão da avalanche de sentimentos das suas personagens.

Estas referências trazem um ritmo e uma linguagem familiares para os espectadores de hoje e aproximam a Pixar à inventividade que foi sua marca um dia. Mas, mais do que isso, garantem a especificidade do relato de Shi. Porque, sim, esta é uma história muito íntima para a diretora. Não bastasse a repetição do tema de Bao para frisá-lo, Meilin é, de muitas formas, um totem da experiência dela — a animadora tinha 13 anos em 2002, ano em que a história é ambientada, e sua família é de origem chinesa, mas se estabeleceu no Canadá. Essa particularidade não impede que o espectador que por ventura não se identifique com Meilin se coloque no seu lugar. Pelo contrário: apenas amplia a potência e a universalidade de Red.

(Correndo o risco de dizer o óbvio, você não precisa ser mulher, chinesa-canadense, ter 13 anos, ser ótima em matemática e, ainda, capaz de virar um panda-vermelho para entender o quão difícil pode ser reconhecer as partes de si mesmo que te dão medo. Ou então identificar o sofrimento de decepcionar seus pais para ir atrás de algo que é importante para você. No entanto, estes são elementos que inegavelmente adicionam textura e complexidade. Menosprezá-los por serem diferentes de você é somente limitador).

Ainda que os tons pastéis e as formas arredondadas garantam um filtro inocente para a história, Red carrega uma honestidade bastante louvável. No quesito pré-adolescência, a atração fervilhante pelos colegas de classe, a lealdade incondicional das amigas e o constrangimento da primeira menstruação estão ali, sem vergonha. Aliás, não há embaraço em reconhecer a relevância de coisas muitas vezes tidas como menores por estarem associadas a uma ideia de feminino. Elas estão lá, expostas com orgulho. Mas, tão importante quanto, as relações entre as personagens são genuínas. Por isso, para além de toda a pirotecnia do final, a força de Red vem mesmo do seu final simples e discursivo. Nesse caso, não é a solução mais fácil. É a culminação certeira para uma verdadeira história de amor.

Nota do Crítico
Ótimo
Red: Crescer é Uma Fera
Turning Red
Red: Crescer é Uma Fera
Turning Red

Ano: 2022

País: Estados Unidos

Duração: 100 min

Direção: Domee Shi

Roteiro: Domee Shi, Julia Cho, Sarah Streicher

Elenco: Rosalie Chiang, Sandra Oh, Maitreyi Ramakrishnan

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