Musicais têm um público muito específico, mas, com determinados títulos, algumas canções, situações ou mesmo a percepção cultural a respeito, conseguem perfurar essa bolha e se tornam perceptíveis para quem está “do lado de fora”. Esse é o caso de Rent, por exemplo, que estreou em 1996 na Broadway e está em cartaz até hoje. Uma grande parte das pessoas pode não saber do que se trata, mas pode reconhecer trechos de Seasons of Love ou La Vie Boheme, algumas das canções que se tornaram lendárias no gênero e na vida breve de Jonathan Larson, criador desse universo.
Rent é um musical que fala sobre a NY dos anos 80, quando a cidade ainda se reerguia de um período de obscuridade oriunda da década anterior e se reafirmava como centro da contracultura, desafiando normas e padrões que ela mesma cristalizaria depois. Contudo, Rent mudou a forma como os musicais eram vistos. Sua história sobre um grupo de jovens lidando com falta de dinheiro, oportunidades, pressões, o estigma da AIDS, nada tinha a ver com o mundo lúdico de Cats ou Wicked. Era aquele momento da história sendo cantado em tempo real.
Foi, também, o período em que Larson passou sua juventude tentando ser um compositor de musicais. O aspirante passou todos os anos 80 lutando por uma chance de provar seu talento, ao mesmo tempo em que a própria cidade parecia impedi-lo de destacar-se da multidão de outros sonhadores. Lin-Manuel Miranda, então, usou um pouco de metalinguagem para recontar esse período da vida de Jonathan: Tick, Tick Boom foi o musical que Larson criou antes de Rent e que conta a história de sua saga para lançar Superbia, o musical que escreveu por 8 anos e que nunca saiu do papel. Então, o que estamos vendo são números de Tick Tick, enquanto conta o processo de Superbia, resultando num terceiro elemento, que é o que costura essas pontas.
Me aceite ou me deixe
Andrew Garfield, então, surge em cena encarnando cada uma das ansiedades e expectativas de Jonathan Larson. Os trechos de Superbia enquanto são feitos representam a base da pirâmide, a porção mais imatura. Tick Tick Boom fica no meio do caminho, ainda tem muito da afetação de um jovem artista tentando se reafirmar. Mas, a dramaturgia que está entre cada um desses dois momentos deixa claro que o topo da pirâmide – Rent – é o futuro que o filme não vai alcançar. Assim, Garfield transita entre a completa obsessão e as duríssimas epifanias que vem junto com a realidade. Tudo isso com toneladas de carisma e uma potência vocal impressionante.
É muito curioso porque, como costuma acontecer com cinebiografias sobre gênios, tudo se baseia em sacrifício. Tick Tick Boom não tem como escapar disso, porque, de fato, para que seja possível ser ouvido em meio à multidão de talentos tentando uma chance, é necessário muito foco. Larson negligencia seu relacionamento, suas amizades, a própria sobrevivência, mas o roteiro de Steven Levenson e a direção de Miranda não perdem o mais importante de vista: a plateia precisa gostar de Larson e torcer por ele. Para isso, Garfield assume a determinação e a ingenuidade de um Robin Williams, suando enquanto fala da paixão pela arte, mas com os olhos de quem quer tentar alcançar o coração das pessoas.
A direção ágil vai juntando os pedaços daquele musical que nunca foi produzido (Superbia), com os pedaços do musical que veio depois para falar desse fracasso (Tick Tick Boom), com a vida em caos de Larson, muitas vezes numa espécie de diálogo indireto, já que pela primeira vez ele é o ator, o autor, o compositor, o personagem e o narrador. É uma imersão profunda, mas muito mais fascinante porque não é uma imersão em fatos, é uma imersão na visão e nos sentimentos de Jonathan. Poucas vezes uma obra conseguiu transmitir tão intensamente a vida de um artista a partir das vibrações dele e não através de suas conquistas simplesmente.
30/90
Como estamos falando de um artista que estava amadurecendo, o projeto inicial de Larson (Superbia) era uma versão hiper ambiciosa de 1984 de George Orwell, que aparece embalado por canções de Tick Tick Boom, que ainda demonstram o desnivelamento de Jonathan enquanto compositor. Algumas canções são estranhas e outras são inacreditavelmente emocionais. O que faz todo sentido, já que em sua bolha de homem branco, hetero, na crise dos 30, com um sonho nas mãos, Larson perde perspectiva e esquece do que há de real à sua volta.
Não é à toa que o personagem esteja cercado de exemplos de opressão social. Ele está no centro da epidemia de HIV, testemunhando o descaso com as minorias e vivendo num momento da história que era todo sobre quem não tem privilégios. Seu amigo Michael (Robin de Jesús), sua amiga Carolyn (MJ Rodriguez), sua namorada Susan (Alexandra Shipp)... Todos ao redor estão sendo tratados por Larson como espectadores de seus objetivos, mas é somente quando ele olha de verdade para eles que as palavras de sua agente ecoam claramente: “Escreva sobre o que você conhece”.
Esse não é um musical sobre coreografias e cenários eloquentes, mas seu senso de espetáculo não fica em segundo plano. Mesmo que Garfield e Vanessa Hudgens (espetacular) estejam sentados em banquinhos, as emoções, a vontade, a força, são imensas; o que é um reflexo direto de Lin-Manuel Miranda como diretor de atores. Nada mais importa a não ser o que é dito, cantado, observado. Nenhuma palavra do texto é desperdiçada, nenhuma canção (por mais estranha que seja) deixa de ter escopo narrativo... Os criadores do filme Tick Tick Boom sabem tudo que estão fazendo.
Especialmente nesse momento, em que atravessamos os resquícios de uma longa e dolorosa pandemia, as palavras de Jonathan ao tocar piano na chuva do Central Park ecoam como uma lição poderosa, dita em versos de uma intensidade profunda, sobretudo levando em consideração o chocante final dessa história. Escreva sobre o que você conhece, cante sobre o que você sabe, encontre o que te faz feliz na vida e faça um voto: o de que você vai passar toda a sua vida desse jeito.
Ano: 2021
Elenco: Andrew Garfield