[Artigo publicado originalmente em 15 de abril, antes de Chloé Zhao vencer a categoria de Melhor Direção no Oscar 2021]
Às vezes parece que basta um diretor se destacar no cenário independente para atrair a atenção dos grandes estúdios e ser contratado para comandar um blockbuster. Foi assim que Barry Jenkins, roteirista e diretor dos longas Moonlight e Se a Rua Beale Falasse, ambos vencedores de prêmios no Oscar, pavimentou seu caminho até ser chamado para encabeçar a sequência do "live-action" de O Rei Leão. Situação semelhante aconteceu com Taika Waititi, indicado ao prêmio da Academia pela primeira vez em 2005, com o curta-metragem Two Cars, One Night, e que se destacou nos anos seguintes com os independentes O que Fazemos nas Sombras e A Incrível Aventura de Rick Baker. Depois de estar a frente de Thor: Ragnarok e um episódio de The Mandalorian, ele filma agora Thor: Love and Thunder para o Marvel Studios. Mesmo a novata Emerald Fennell, indicada a melhor roteiro original e direção no Oscar 2021 com seu longa de estreia, Bela Vingança, já tem um filme baseado em quadrinhos para chamar de seu: a aventura solo da Zatanna.
Contudo, este não foi exatamente o caso de Chloé Zhao, a diretora de Os Eternos. Diferentemente do que se costuma imaginar, ela não foi encurralada, nem sequestrada pelo presidente do estúdio Kevin Feige até aceitar o projeto, como chegou a sugerir Jenkins, em tom de piada, em bate-papo com a cineasta na Variety. Pelo contrário, foi ela quem contou para todo mundo que queria fazer um filme do MCU e esperou o projeto ideal cair no seu colo. "Construir universos é uma das minhas paixões. É por isso que amo Star Wars. Existe um mundo tão rico que eu queria entrar nele e ver o que eu seria capaz de fazer", explicou.
Bom, deu certo! Depois de ser considerada para Viúva Negra, Zhao foi escolhida para comandar Os Eternos, o novo épico da Casa das Ideias que chega aos cinemas em 29 de outubro. No entanto, em 2021, o longa estrelado por Salma Hayek e Angelina Jolie é apenas um item na lista de conquistas de Zhao. Vencedora do prêmio de melhor direção em longa-metragem pelo DGA, o prêmio do Sindicato de Diretores, a cineasta chinesa chega à cerimônia do Oscar como a grande favorita para levar uma estatueta dourada. Não por Os Eternos, é claro. Mas pelo reflexivo Nomadland.
Estrelado por Frances McDormand, o longa narra a história de uma viúva que, como muitas famílias no interior dos Estados Unidos, perdeu seu ganha-pão e sua comunidade com a recessão de 2008. Independente - ou teimosa, segundo a irmã da personagem -, Fern decide levar uma vida itinerante depois da morte do marido e conhece pela estrada outros tantos viajantes que também moram em suas vans.
Como em seus filmes anteriores, Songs My Brothers Taught Me e Domando o Destino (The Rider, no original), o último trabalho de Zhao foi rotulado por parte da crítica como um docudrama. Embora nenhuma das três produções se propunha a retratar fatos ou personagens com um compromisso investigativo, a diretora tem essa fama por escalar pessoas sem experiência em atuação para viver versões ficcionais das suas próprias vidas. Segundo a própria cineasta, ela não é "o tipo de roteirista-diretora que consegue criar personagens assim em uma sala escura". Desta forma, trabalhar com atores “não-profissionais” deixa mais espaço para ela construir um universo ao seu redor, processo pelo qual ela é tão apaixonada.
Em Songs My Brothers Taught Me, por exemplo, a diretora escrevia pela manhã as cenas que gravariam naquele dia, sempre pedindo permissão para incluir eventos e situações da vida real dos atores. Foi assim que o incêndio da casa de Jashaun St. John foi incluído no filme. Os detalhes são todos criações de Zhao, mas o sentimento na tela é 100% genuíno.
Apesar de Nomadland ter como protagonista uma vencedora do Oscar, ele também é povoado por pessoas que de fato vivem como nômades, como duas das amigas de Fern, Swankie e Linda May, e o representante do movimento no Youtube, Bob Wells. Aliás, vale notar que a Searchlight Pictures, distribuidora do filme, chegou a fazer campanha para que os três fossem também indicados ao Oscar.
Derek Endres durante as filmagens de Nomadland
No entanto, talvez o personagem de Derek Endres seja o exemplo mais interessante do trabalho mais recente da diretora com atores não-profissionais. O jovem com quem Fern cruza em dois momentos distintos no filme entrou no roteiro depois de Chloé Zhao encontrá-lo na estrada. Originalmente, a diretora queria retratar uma jovem grávida, já que a protagonista de Nomadland nunca teve um filho. Mas a conversa com Derek foi tão rica que ela decidiu recalcular a rota.
"Ele é assim na vida real, como se tivesse vindo de uma outra era", contou a diretora a Barry Jenkins na Variety. "No momento que o conhecemos, [ficou claro que] se alguém iria representar esse espírito jovem e inquieto em busca de identidade seria o Derek. Ele começou a me contar várias coisas, muitas das quais você viu na tela, e nós escolhemos as partes que ele diria. No final, ele acabou no departamento de arte e ficou com a gente por um mês."
Era de se esperar que estando a frente de um blockbuster do Marvel Studios, em que cada detalhe faz diferença no intrincado calendário de lançamentos, a cineasta precisaria abandonar essa abordagem. No entanto, segundo o ator Kumail Nanjiani, esse não foi o caso. Ao encontrar com Zhao para discutir seu personagem em Os Eternos, Kingo, o comediante ouviu: "ele é você. Te escolhi porque queria que ele fosse você". "Foi assim que ela escolheu todo o elenco. Ela queria que todo mundo colocasse fragmentos deles nos personagens", afirmou Nanjiani à Vulture.
Coisa do destino
A diretora Chloé Zhao e a atriz Frances McDormand durante intervalo das filmagens de Nomadland
Como a Zhao mesmo frisa em diferentes entrevistas, tudo em Nomadland foi uma construção coletiva - até mesmo seu envolvimento com o projeto. Porque enquanto a cineasta chinesa planejava falar sobre a comunidade nômade dos EUA na perspectiva dos jovens, Frances McDormand adquiria os direitos de adaptação do livro de Jessica Bruder, Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, que tratava do mesmo tema, mas a partir do olhar de pessoas idosas. Quando McDormand, que começava a dar seus primeiros passos como produtora, procurou a diretora para falar sobre a obra, Zhao sentiu que as peças do seu quebra-cabeça finalmente encaixavam. "Pareceu destino. Não senti que estava pulando para outro projeto, mas para uma versão mais aprofundada do que eu queria fazer", definiu à Vulture.
É curioso que o caminho das duas se cruzou por uma “contravenção” da premiada atriz. Mesmo com a agenda lotada de compromissos com a imprensa para promover Três Anúncios para um Crime no Festival de Toronto, McDormand decidiu dar uma escapada e seguir o conselho de um amigo, isto é, assistir Domando o Destino, o segundo longa da carreira de Zhao. Nos primeiros minutos, ela se sentiu tão imersa na história do jovem protagonista Brady Blackburn que quis se encontrar com a diretora chinesa para ver se poderia repetir esse efeito com Nomadland. A aclamação do público e da crítica, assim como a indicação ao Oscar, comprova como o plano foi bem-sucedido - e tudo indica que a cerimônia no dia 25 de abril fará coro à coleção de prêmios que Zhao e McDormand ganharam no último ano.
De largada, a cineasta chinesa se destaca por uma triste estatística da Academia: antes da sua indicação ao lado de Emerald Fennell, apenas outras cinco mulheres concorreram à melhor direção em 93 anos de prêmio - entre as quais, somente uma venceu: Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror. Além disso, ela é a primeira mulher não-branca e a primeira chinesa a disputar na categoria. Quer dizer, com ou sem estatueta, ela já fez história.
Não bastasse a indicação à direção, Zhao ainda aparece na lista deste ano concorrendo aos prêmios de Melhor Edição, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme, já que ela é também uma das produtoras de Nomadland. E, diga-se de passagem, com grandes chances de sair vencedora também nelas.
A diretora é certamente um dos novos nomes de Hollywood a ser acompanhado com atenção, independentemente da decisão da Academia. E se Nomadland for um presságio do que se pode esperar de Os Eternos, o novo lançamento da Casa das Ideias está em excelentes mãos.