Estamos mesmo falando daquele passarinho que come pinhão, ou melhor, enterra para comer e depois esquece&qt;&
Sim e não.
Como você deve saber, os quadrinhos tornaram-se um fenômeno cultural graças aos jornais. Desde o fim do século retrasado, eles abriram espaço às HQs. Houve tempo em que suplementos inteiros dedicavam-se a essa forma de arte. Hoje, no entanto, os periódicos já não lhes dão tanta importância. Mesmo assim, continuam sendo a fonte de muita coisa boa. Há inúmeros autores que usam como ninguém o exíguo espaço reservado às tiras de quadrinhos. Em bom português, os jornais ainda são um grande refúgio...
... e foi nessa lacuna que o tal Gralha se aninhou.
Publicado no início dos anos 40 pelo desconhecido (e quase lendário) Francisco Iwerten, o Capitão Gralha veio de um planeta de homens-alados, dominado pelo terrível Thagos. Encontrando refúgio na Terra, o herói emprestou seus poderes alienígenas ao combate ao crime no Paraná.
Misto de Flash Gordon e Super-Homem, a personagem teve vida breve. Foram editados apenas dois números de suas aventuras antes do título ser lançado no mesmo abismo que tantos outros precursores das HQs nacionais. De suas revistas, nem mesmo resta um único exemplar para testemunhar sua efêmera passagem.
O seu retorno – ou quase isso – ocorreu, em outubro de 1997, na edição especial da extinta Metal Pesado, em comemoração aos 15 anos da Gibiteca de Curitiba. Para confeccionar a revista, foram convidados vários quadrinhistas da cidade. Parte deles, então, decidiu homenagear aquele ícone esquecido dos quadrinhos curitibanos, o Capitão Gralha.
Entre os envolvidos no resgate da herança de Iwerten, foi unânime que, hoje em dia, estaria longe de ser bem visto, um homem alado, com um G no peito e bigodinho. Optou-se, então, por criar uma versão atualizada do datado aventureiro.
Alessandro Dutra bolou o visual; Gian Danton e José Aguiar; a história; Antonio Eder, Luciano Lagares, Tako X, Edson Kohatsu e Augusto Freitas, bem como Dutra e Aguiar, encarregaram-se da arte, enquanto Nilson Müller tratou de preparar a capa da edição.
E assim o Gralha fez sua estréia.
Um ano depois, a personagem ganhava sua página semanal no Caderno Fun da Gazeta do Povo. Novos elementos foram acrescidos à sua mitologia. Agora descendente do Capitão Gralha original, o herói iniciante convive com as agruras do combate às injustiças e os dilemas da adolescência numa metrópole um pouco diferente da Curitiba de hoje.
Talvez Curitiba seja o único município do país, onde um super-herói não aparenta estar (muito) deslocado. Afinal, ela mesma faz questão de, provincianamente, vender a imagem de cidade de primeiro mundo. E nada mais globalizadamente provinciano do que um vigilante de colante.
Localizada num futuro indeterminado, a Curitiba do Gralha é uma personagem à parte. Nela, todas as características da verdadeira são elevadas à enésima potência. Em seu seio, convivem arranha-céus ciclópicos e muitas, muitas árvores. Essa Curitiba parece crescer ordenada e infinitamente, chegando até mesmo ao Atlântico. Na verdade, é o paraíso de todo super-herói. Em suas quadras, existem todos os lugares-comuns do gênero herói encapuzado. Mas nem tudo são glórias. O crime ainda persiste.
Em seus recônditos, os supervilões estão à solta: Araucária, Café Expresso, Biscuí do Mato, Pivete Cybertécnico, Homem Lambrequim, Dr. Botânico, Polaquinha e Bagre Humano são apenas alguns dos elementos extravagantes que o Gralha invariavelmente envia para ilha-prisão do AHU. Isso sem falar do misterioso gênio conhecido como O Craniano, cuja cabeça gigantesca é tatuada como uma pêssanka (aqueles ovos pintados pelos ucranianos na Páscoa).
Definitivamente, todos os elementos clássicos... e por que não&qt;&... clichês dos quadrinhos de heróis estão presentes nas HQs do Gralha. Sim, você vai encontrar cientistas loucos, mutantes e vilãs boazudas, mas não como está acostumado a ver. Para começo de conversa, o Gralha é um homem fantasiado como um tolo e inofensivo passarinho. Quer coisa mais ecológica, e por que não ufanista&qt;&
Alguns de seus autores adoram super-heróis; outros detestam abertamente o gênero. Há quem o desenhe cartunizado, mas não faltam aqueles que o retratem realisticamente ou até mesmo com toques abstratos... E ainda assim, o Gralha é um só. Convenhamos, a graça de criar esse passarinho está em, simplesmente, fazer algo que, de tão comum, acaba sendo único.