Tilda Swinton em A Voz Humana (Reprodução)

Filmes

Crítica

Almodóvar faz fábula de construção e destruição no curta A Voz Humana

Tilda Swinton encarna com garra a “mulher à beira de um ataque de nervos” da vez

28.10.2021, às 09H58.

A Voz Humana é um ato de exposição de entranhas em mais de um nível. Na superfície, é um filme à flor da pele porque retrata a última conversa de telefone entre uma mulher (Tilda Swinton) e seu amante, que a abandonou na casa que os dois compartilharam por quatro anos e não quer voltar nem para buscar as suas coisas. 

O texto de Pedro Almodóvar, adaptado da peça de Jean Cocteau, não nos poupa da montanha-russa de emoções de um término tão significativo. A personagem principal passa por acessos de raiva, pelo impulso patético de implorar pela retomada da relação, pela nostalgia vazia que ignora os momentos ruins do passado - enfim, por todas as paradas usuais no caminho para algum tipo de serenidade e reconstrução de si mesma.

Swinton, atuando sozinha o tempo todo, encara uma personagem que, nas mãos de uma atriz menos capaz, poderia ser apenas um símbolo, pelo pouco que sabemos dela. Ao invés disso, a estrela de Precisamos Falar Sobre o Kevin e Doutor Estranho nos entrega uma mulher brusca, intensa, ainda que extraordinariamente dignificada em sua fúria e sua eventual catarse.

Por baixo dessa primeira camada da trama, no entanto, A Voz Humana é também um ato de exposição de entranhas para o próprio Almodóvar. Nos últimos anos, o mestre espanhol tem passado por uma reavaliação íntima da própria obra, como a trama reflexiva e autobiográfica de Dor e Glória deixou claro em 2019 - e seu novo curta-metragem também é parte inconfundível desse processo.

Filmando Swinton em um galpão, sem se preocupar em esconder a artificialidade do cenário, Almodóvar expõe as estruturas por trás de suas criações mais icônicas. O apartamento da protagonista no filme é um ambiente tipicamente “almodovariano”, com suas cores primárias distribuídas em formas geométricas e peças de arte simbólicas penduradas pela parede.

Durante os 30 minutos de A Voz Humana, o cineasta aos poucos mostra a artificialidade das paredes cenográficas (um take de cima, mostrando as divisões entre cômodos e a iluminação do set, é especialmente notável), insere cadeiras de escritório prosaicas e contemporâneas em seu ambiente bem planejado - enfim, sublinha que o seu mais novo filme é exatamente isso: apenas um filme.

Quando chegamos ao ato final de liberação da protagonista, estamos simultaneamente mergulhados nas emoções dela e agudamente cientes da sua artificialidade. E então Almodóvar coloca tudo abaixo, fechando um ciclo de construção e destruição próprias que encarnam melhor do que qualquer outra coisa a obra recente do diretor.

Ver um grande artista mexer nas peças do quebra-cabeça do seu próprio legado, especialmente de forma tão inteligente, é sempre um enorme prazer.

A Voz Humana estará disponível a partir de amanhã (29) para compra e aluguel nas plataformas Now, Amazon Prime, Vivo Play, Google Play e YouTube Filmes.

Nota do Crítico
Excelente!