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Talvez o grande segredo do mestre Walt Disney ao exercer o seu habitual fascínio nas crianças de todas as idades, gente grande inclusive, é ziguezaguear entre o universo absolutamente imaginário e desprovido das leis da matéria física, e a realidade osseocarnal dos mortais terráqueos. Superescola de Heróis (Sky High, 2005) não só não foge como ainda sedimenta esta regra. Baseado e chupinhado em tantos outros congêneres fictícios, muitos deles da própria casa, este filme estabelece conexões mais próximas com o recente Os Incríveis, na sua razão inversa. Nessa animação da Pixar, os personagens são inspirados nos amálgamas do corpo humano, mas não são humanos. São criaturas de computador moldadas em uma referência daquilo que poderia ser definido como matéria viva e orgânica. São bonecos, pra lá de virtuais, traduzidos em imagens, que imitam as ações e reações do homo sapiens. Super-heróis que, como dificilmente imaginamos, são trazidos para o cotidiano prosaico do âmbito caótico familiar. Pai obeso e deprimido, mãe dona-de-casa atarefada, filhos na crise da adolescência.
Superescola de Heróis aborda também mais ou menos isso, ou exatamente o contrário. Há sim uma família, capitaneada pelo casal Comandante (Kurt Russell) e Super Jato (Kelly Preston). É a dupla mais famosa e poderosa do planeta onde vivem, graças à combinação matrimonial de força e velocidade nas suas ações de combate ao crime. No entanto, essa dupla dinâmica e fantasiosa é interpretada por gente que não nasceu numa CPU, mas sim numa maternidade. Embora nunca os tenha visto, sei que existem de verdade. E, ao invés de dar atenção aos detalhes monótonos do dia-a-dia familiar, Superescola coloca a prática dos superpoderes com a maior naturalidade. Movem-se telepaticamente objetos como se estivesse indo à feira. Levanta-se um automóvel com o mesmo esforço de escovar os dentes.
O filme se apresenta totalmente fora da realidade como a concebemos. Os créditos iniciais são acompanhados por ilustrações de história em quadrinhos. Indica-se claramente que tudo é construído e orquestrado dentro de um projeto atópico. E, depois dessa performance folhetinesca juvenil, mergulha-se sem maiores conflitos nessa Ilha da Fantasia.
Superescola é uma mistura de Patinho Feio com Liga Extraordinária. Will Stronghold (Michael Angarano) sente-se envergonhado de não ter nascido com superpoderes. Esconde essa fraqueza dos seus pais, fingindo fazer halterofilismo com discos ultrapesados. Ironicamente, ao som da oitentista Everybody wants to rule the world, música do Tears for Fears. Vai pra escola, onde será obrigado a conviver com colegas que ou são mestres nos dons paranormais, ou estão em estágio avançado de aprendizado. Garota que se multiplica, homem-elástico, moleque franzino que quintuplica seu tamanho são alguns dos catedráticos com quem terá de conviver.
Claro que, como todo filme Disney, esta película obedece aos ditames tradicionais e conservadores da sociedade estadunidense. Não há maiores confrontos de valores éticos e morais, tampouco agressões físico-verbais aos bons costumes. Embora disforme em sua natureza, toda a composição cênica é quadradinha. Tudo é muito mórmon nessa academia de ensino de prodígios. Há sim, de leve, pequenos arranhões na perfeita ordem social. O técnico Boomer (Bruce Campbell), examinador responsável por aplicar as provas de habilidades aos estudantes e classificá-los em heróis ou assistentes, não usa as práticas mais ortodoxas em seus métodos. Isso mostra que, por mais perfeita e mediúnica que seja uma organização, nos seus núcleos de formação de base há um trabalho preconceituoso e sujo. Sujinho, vai.
Tiradas as excentricidades vistas na capacidade de transformação do esqueleto, a maior graça do filme, resta pouca história pra contar. É mais um trabalho sobre adolescente rejeitado que não se envolve com a gangue barra-pesada e se apaixona pela garota mais bonita do colégio. É um argumento batido, agravado por uma solução de certa forma sacana nessa condição de trabalhar o complexo de inferioridade.
Quando não há gente congelando, brilhando no escuro ou virando gelatina, sobram frases de conteúdo positivista, fincado no determinismo conformista da condição subdesenvolvida. O importante é aprender é papo mais furado que discurso de time de futebol caindo pra Segunda Divisão. Outra frase evoca ter orgulho de ser assistente (contente-se com sua miséria). Um último exemplo a se citar é a prova de que não dá pra se transformar o mundo, mas pode-se adquirir o desejado bem-estar nele: faça do limão uma limonada (não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho). Por mais estrambótico e encantador que seja o liquidificador, consegue-se extrair pouco suco desse refresco de auto-ajuda.
Érico Fuks é editor do site cinequanon.art.br