Duas tomadas nos dez primeiros minutos são suficientes para entendermos o que A Questão Humana quer nos dizer. Na primeira, dentro do banheiro de uma empresa, jovens com camisas claras, gravatas e ternos escuros se arrumam diante do espelho, um depois do outro, como numa organizada linha de produção. No plano seguinte, é a happy hour: os mesmos empregados se entregam à anarquia de movimento dos seus corpos em uma rave.
Para servir de ponte a esses dois momentos - a disciplina das aparências e seu oposto - o diretor francês Nicolas Klotz elege um personagem, um protagonista: Simon, o psicólogo da empresa, vivido por Mathieu Amalric (de Reis e Rainha, Munique e do próximo 007). É ele quem arranca as confidências dos empregados. Ou, mais apropriadamente, é ele que decide quem está mental e fisicamente apto a exercer as funções exigidas pela companhia.
questão humana
questão humana
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A própria cena que abre o filme, travelling de frente para um muro pintado com metragem, já sugere uma corrida por recordes, desempenho. Não é difícil prever que se desenha aí um viés de esquerda em A Questão Humana. Mesmo porque Simon nos diz logo de cara que trabalha na subsidiária francesa da petroquímica alemã SC Farb há sete anos e foi fundamental na reestruturação do pessoal, quando ajudou a cortar parte maciça do corpo de funcionários. É o cenário predileto para a esquerda fazer sua crítica ao capitalismo, especificamente a esquerda francesa, abraçada às suas conquistas trabalhistas.
Felizmente Klotz não se apega ao lado ideológico da coisa. Como o próprio título diz, é uma questão humana. Acompanhamos ao longo de 140 minutos como Simon, depois de repetir vezes e vezes o tecniquês empresarial, percebe a desumanização do processo seletivo que ele comanda - e desaba emocionalmente diante da máquina de moer carne do mundo produtivo.
O idioma dessa "geração técnica" (como um personagem chama os industriais), que adapta termos em alemão para a realidade francesa, é um elemento fundamental no filme. Como narrador, Mathieu Amalric já começa o filme escolhendo palavras com cuidado, arrastando a voz cerebralmente antes de pronunciá-las. Aos poucos - numa suave e difícil mudança de entonação - percebemos como o personagem fica angustiado por essa tucanização (eu não pretendia meter política brasileira no meio, mas "tucanar" é um verbo mais que exato) da língua. Ao fim do filme a narração e a crítica ao vocabulário tecnicamente correto será crucial.
Aliás, pode parecer um simples caso de sinônimos, mas há, de acordo com um importante personagem, uma diferença entre "questão" e "problema". A Europa tem questões de ordem social, sempre teve, mas seus governantes e suas lideranças insistem em tratar essas questões como problemas. Deixa-se de discuti-las, passa-se a solucioná-las. E sabemos do que a Europa é capaz quando se convence de que precisa solucionar um problema.
O verbo é, enfim, não só um instrumento de opressão e dominação - e é assim desde o início dos tempos - mas também a ferramenta do concílio. Ou melhor, ferramenta da terapia, já que estamos tratando de um protagonista psicólogo. A Questão Humana lida de forma muito bonita com a questão da palavra, seja ela cantada em espanhol ou em português, seja ela usada numa prosa franco-germânica em off, e casa bem com as imagens cuidadosamente filmadas por Klotz. E casa também com as não-filmadas, já que o uso do extracampo (a ação que ocorre fora do enquadramento) é constante.
Nesse drama de incontornável peso político, que levou o prêmio da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado, o cineasta às vezes sucumbe ao apelo da generalização (a batida da polícia contra os negros, mensagem descontextualizada, é mais uma provocação do que uma articulação de idéia), mas no fim dá o seu recado humanista com brilhantismo.