Miley Cyrus na capa do Endless Summer Vacation (Reprodução)

Créditos da imagem: Miley Cyrus na capa do Endless Summer Vacation (Reprodução)

Música

Crítica

Endless Summer Vacation é álbum pop dolorido por baixo da sonoridade sofisticada

Novo disco traz Miley Cyrus em seu momento mais musicalmente afiado, visceral e cerebral

Omelete
4 min de leitura
14.03.2023, às 11H36.

Você, caro leitor, provavelmente já sabe a letra de “Flowers” de cor. O mais recente hit de Miley Cyrus, single principal e faixa de abertura do álbum Endless Summer Vacation, se provou inescapável nos últimos dois meses com sua mensagem enérgica de amor próprio e autossuficiência, sua linha de baixo contagiante e seu pacote de cordas brilhantemente sutil, responsável por dar aquela “levantada” no refrão, providencial para qualquer confecção pop. O que o ouvinte atento descobre ao reproduzir o Endless Summer Vacation de ponta a ponta, no entanto, é que “Flowers” é na verdade uma enganação - no melhor sentido possível.

Mais bacana ainda: foi só lá em “Wildcard”, décima e antepenúltima canção do álbum, que o engodo de Miley e seu time de colaboradores ficou claro para mim. A faixa, alimentada pela bateria temperamental do produtor Kid Harpoon, incluindo uma virada de percussão brilhante perto do primeiro refrão, resgata várias das imagens construídas por “Flowers” só para desconstruí-las. Um exemplo fácil: no single, Miley canta que vai pintar as unhas de vermelho cereja/ para combinar com as rosas que você deixou; em “Wildcard”, descreve-se chegando em casa com os lábios sujos de vermelho/ travesseiros espalhados pelo chão, e as flores mortas”.

Cantada com fúria que se opõe e complementa, ao mesmo tempo, a segurança suprema que a cantora demonstra nos vocais de “Flowers”, “Wildcard” desnuda como nenhuma outra faixa no Endless Summer Vacation a dualidade da fase vivida pela cantora e traduzida em música por ela. Não é à toa que Miley divide o seu álbum entre AM e PM, afinal - o ciclo aqui começa na autoafirmação terapêutica de quem acorda olhando-se no espelho e se convencendo a encarar o dia, e termina na admissão complexa e dolorida de solidão que caracteriza o rescaldo de uma noite de bebedeira.

A inteligência do disco está em maquiar esse percurso atordoante com camadas de sofisticação pop suficientes para que o ouvinte se veja seduzido, cercado por um universo sonoro irresistível. Na primeira metade do Endless Summer Vacation, isso acontece através das guitarras cheias de eco de “Jaded”, uma balada rock anos 2000 que não ficaria mal na discografia recente do Bon Jovi; na melodia e percussão circulares de “Rose Colored Lenses”, que deixaria o New Radicals se mordendo de inveja - especialmente pela ousadia de enfiar um saxofone distorcido nos momentos derradeiros da canção; na mistura genial de country e synthpop que marca “A Thousand Miles”, completada pela harmonia perfeita entre Miley e Brandi Carlile, além do finalzinho que combina gaita com sons sintetizados remanescentes da cuíca (é sério!).

Chegue perto da fatia PM do disco, e as referências mudam: “You” abusa das convenções da balada soul ao piano, mas tem ideias melódicas deliciosas (a cadência do penúltimo verso do refrão, entoado com fôlego exemplar por Miley, é a melhor do disco); “Handstand” é um poema ligeiramente musicado que, com a ajuda de letras do cineasta Harmony Korine (diretor de Spring Breakers), prova que o Endless Summer Vacation cai tão bem em Miami quanto em Los Angeles; e a parede de sintetizadores de “Violet Chemistry” lembra o Pet Shop Boys, mas a canção também se aproveita da familiaridade da cantora com o hip hop para aplicar uma virada rítmica audaciosamente brusca antes do último refrão.

O resultado é que, quando “Wildcard” chega para quebrar a fachada construída por Miley, estamos engajados demais na ilusão para sequer perceber - e a popstar ainda acha tempo para o requinte de crueldade que é “Island”, uma balada tropicalizada na qual destila a ideia conflituosa de individualidade que marca o Endless Summer Vacation. Estou em uma ilha, dançando ao Sol/ Tão perto do paraíso, mas tão longe de todo mundo”, canta ela logo nos primeiros versos, por cima de uma harpa que só faz realçar o clima onírico e irreal da canção. Trata-se do sonho febril e ambíguo que fecha o dia de emoções caleidoscópicas no qual se estrutura o disco.

Durante o especial Backyard Sessions, lançado no Disney+ junto com o álbum, Cyrus comentou sobre a gênese da canção: A ideia é que todo mundo ainda é meio que um estranho para mim, mas eu não sou uma estranha para ninguém. Eu fui capaz de criar esses lugares nos quais me sinto segura, mas comecei a contemplar a vida que tenho: é um paraíso, ou uma ilha de solidão?”. A contradição central do Endless Summer Vacation, enfim, é que Miley encara de frente a superexposição do popstar (e não só o moderno - a mescla da persona pública com a artística sempre foi prerrogativa da arte pop) ao mesmo tempo que a perpetua, usando e abusando das ferramentas do próprio sistema em que se diz presa, irremediável e dolorosamente sozinha.

Pode parecer cruel, mas essa é justamente a contradição que tem alimentado a música pop desde que ela se entende por formato artístico - e entender a psicologia por trás do nosso consumo desses produtos é algo que deixo para os acadêmicos de plantão. O que importa é que, inserindo-se nessa tradição com o álbum mais cuidadosamente pensado e medido da carreira, Miley Cyrus só faz garantir o seu lugar na história de um gênero no qual sempre (até agora) precisou lutar para se encaixar.

Nota do Crítico
Ótimo
Endless Summer Vacation
Miley Cyrus
Endless Summer Vacation
Miley Cyrus

Ano: 2023

Produção: BJ Burton, Jonny Coffer, Kid Harpoon, Tyler Johnson, Mike Will Made It, Jay Moon, Maxx Morando, Jesse Shatkin, Max Taylor-Sheppard, Jerome Williams, Zwiffa, Greg Kurstin

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